A Estrada de Ferro Santos a Jundiaí só existe porque Irineu Evangelista de Sousa, o Visconde de Mauá, pagou por ela. Forçado a consorciar-se com os ingleses, foi criada a São Paulo Railway, mas quem financiou os estudos, os levantamentos, os trabalhos de preparo e de execução da ferrovia foi Mauá.
Após constituída a empresa, ele continuou a adiantar os fundos necessários à concretização da obra, confiando na idoneidade do grupo britânico. Ocorre que os ingleses se recusaram a pagar as quantias adiantadas. Escudaram-se em uma série de atos preparados com reconhecida e comprovada má-fé.
Mauá demandou a empresa inglesa nos tribunais brasileiros. Todo o empenho dos ingleses foi desviar o julgamento dos tribunais do Império, levando-o para tribunais britânicos. Levou dez anos a companhia a impugnar o direito de ser acionada no Brasil, utilizando-se de todos os recursos e subterfúgios que a chicana lhe permitisse.
O advogado de Mauá, até 1875, era o Conselheiro Joaquim Ignácio Ramalho. Em São Paulo, foi também representado por Justino de Andrade e Falcão Filho e no Rio o patrocínio era entregue a Lafayette Rodrigues Pereira. Time de primeiríssima, tanto em erudição, como em ética advocatícia.
O artigo 26 do contrato era claríssimo. O foro de eleição era o Brasil, mais especificamente a capital do Império. O tema chegou por duas vezes ao Supremo Tribunal de Justiça. Em 1869, um acórdão fulminou a pretensão inglesa com explicitude inexpugnável e por unanimidade de votos. Só então foi retomado o julgamento em primeira instância, agora em relação ao mérito.
Os ingleses se defenderam com a exceção de incompetência, que já fora repelida pelo Supremo. Só que o argumento foi acolhido e mantido pelo Tribunal de São Paulo. Lafayette ponderou que o Supremo faria valer sua autoridade. Utilizou-se do recurso chamado reclamação.
Surpreendentemente, o Supremo acolheu a inqualificável doutrina da Relação de São Paulo. O que significava invalidar todo o trajeto processual até então percorrido.
Duas decisões sobre a mesmíssima questão. A primeira, em 1869, por unanimidade de votos. A segunda, em 1877, por maioria. Uma diz não, outra diz sim. A verdade poderia existir em ambos os colidentes julgados?
Para Mauá, "uma questão que envolve um princípio fundamental de direito público, que afeta a soberania e independência do Brasil, não pode ser resolvida por julgados que se contradizem manifestamente, e não parece razoável que uma sentença por maioria de votos revogue outra sentença do mesmo tribunal por unanimidade, quando, sendo o assunto o mesmo, a decisão anterior é, pela lei, irrevogável!".
Essa, todavia, é a lição do bom senso. Quem diz que a Justiça trilhe sempre, inexoravelmente, o bom senso? Há justificativas para o disparate. É que, no segundo julgamento, em 1877, a votação foi 6 x 4. O Presidente se absteve. Dos dez juízes anteriores, mantiveram-se firmes no mesmo ponto de vista Villares, Albuquerque, Simões da Silva e Valdetaro. Montserrat, presidente sem voto. Um dos juízes primitivos mudou de voto e outro jurou suspeição. Havia cinco novos e estes, todos divergentes da primeira decisão, formaram a maioria.
Arrematou-se a injustiça. Foi o que Mauá ganhou por fazer o bem. O bem do Brasil. Pátria que costuma pagar com fel os que procuram ajudar seu povo.
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)