No final do filme “Páginas da Revolução” (Sostiene Pereira), uma produção ítalo-franco-portuguesa dirigida por Roberto Faenza, há uma cena muito breve, mas significativa. Nela, o protagonista Pereira (interpretado por Marcello Mastroianni em seu último papel no cinema) vê pela janela de seu apartamento o desembarque de um ônibus escolar com estudantes uniformizados como jovens militares.
O filme retrata a época do governo de Portugal sob o regime ditatorial do nacionalista Antònio Salazar, que começou em 1933 e terminou com a Revolução dos Cravos, em 1974. Na trama, Pereira - um editor do caderno de cultura de um jornal lisboeta, apolítico - involuntariamente acaba por envolver-se com jovens militantes contra a ditadura. A cena em questão é chave para apontar os rumos que Portugal está tomando sob o comando do salazarismo.
Salazarismo que, assim como o franquismo da Espanha, bebeu nas fontes do fascismo italiano. E aquela breve cena, sob o olhar de um desolado Pereira, aponta para algo em comum nos regimes autoritários no que diz respeito à educação: a militarização do processo educacional desde os anos iniciais da aprendizagem. Foi assim na Itália, de Benito Mussolini, na Alemanha de Hitler, no Brasil com o Estado Novo, de Getúlio Vargas, e mais recentemente com a ditadura cívico-militar de 1964 a 1985, com as disciplinas “educação moral e cívica” e “organização social e política do Brasil”.
Não é de se surpreender, portanto, que o (des)governo protofascista de Jair Bolsonaro tenha instituído o programa das escolas cívico-militares - medida anulada pelo governo Lula em seus primeiros dias de mandato. Também não chega a ser surpresa que seu afilhado político hoje instalado no Palácio dos Bandeirantes tenha, apesar de legalmente controverso, retomado o projeto de criação das escolas cívico-militares em São Paulo.
Essa questão da militarização do ensino no Brasil precisa ser mais debatida. E, de forma alguma, naturalizada. Em primeiro lugar, ela é um sinalizador de como o atual governo paulista enxerga o ensino e, por extensão, a sociedade. Num plano mais amplo, revela uma proposta de doutrinação das crianças e jovens sob os preceitos do autoritarismo, da disciplina rígida e da subserviência acrítica a um comando superior. Em síntese, restringe, quando não elimina, toda e qualquer manifestação democrática, criativa e questionadora.
Se não bastasse o aspecto ideológico da proposta, sua operacionalização não é menos problemática. Conforme a resolução do governador paulista, os estudantes terão aulas sobre estrutura e funcionamento do Executivo, Legislativo e Judiciário, além de ética e “valores cidadãos”.
Em sua “ementa” constam ainda ensinamentos sobre civismo, dedicação, excelência, honestidade e respeito, bem como direitos e deveres do cidadão e prática da cidadania. Com duas horas-aula por turma. Detalhe: a remuneração dos “professores”, que serão militares aposentados, é superior a dos profissionais de educação tradicionais da rede pública.
Não é preciso ser especialista em educação para apontar a quantidade de erros da medida. A primeira delas é, justamente como apontado aqui no início, a militarização do ambiente escolar. A escola, antes de mais nada, deve ser um espaço de democracia, tolerância, debates, inclusão e estímulo ao espírito crítico. As aulas devem ser ministradas por professores devidamente qualificados. Para isso existem os cursos de pedagogia e licenciatura.
É, no mínimo, absurdo propor a militares aposentados, sem qualquer qualificação para tanto, uma remuneração para tais aulas com valores superiores aos destinados aos demais profissionais da educação. Denúncias contra as escolas cívico-militares surgem a cada momento. É exemplar trecho da reportagem do UOL (“Alunos em delegacia e censura: professores criticam escolas cívico-militares”, de 03/09/2022) sobre as unidades escolares deste tipo implantadas em Brasília, Rio de Janeiro e Paraná: “Todas as pessoas ouvidas (pela reportagem) contaram que a relação entre policiais e professores e alunos é turbulenta e que até o conteúdo passado em sala de aula foi prejudicado após a implantação do modelo”.
Em contraposição a esta iniciativa de fascistização do ensino em São Paulo, além de nós, como bancada do Partido dos Trabalhadores (PT), termos votado contra o projeto na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), meu mandato apresentou um substitutivo a esse projeto de lei 09/2024, que institui as escolas cívico-militares.
Ao invés de militarizar as escolas teríamos a humanização das forças policiais consideradas como uma das violentas do mundo. Por fim, como mostra o filme de Roberto Faenza, onde regimes autoritários seguem atrelados à militarização da educação, é nossa obrigação combatê-la desde já, de todas as formas possíveis e ainda no seu nascedouro. Para tanto, é preciso da união de pais, alunos e professores conscientes de que a verdadeira educação é livre, questionadora e crítica. Portanto, democrática e inclusiva.
Maurici é deputado estadual (PT)