22 de dezembro de 2024
OPINIÃO

O que é o Corpo de Deus?


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A celebração do "Corpus Christi", uma das mais bonitas festas católicas, é a oportunidade de recordar que o Criador ofereceu-Se em sacrifício, para redimir a humanidade. A paixão e morte de Jesus Cristo foi fato histórico e definitiva mudança do destino dos humanos.

Nem sempre os cristãos atentam para a dimensão desse mistério. Um atentado contra a divindade não comportaria um pedido de desculpas ou um singelo perdão de parte da criatura. Era preciso a imolação divina. Jesus, o Filho de Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, assumiu a humanidade para saldar esse débito.

Algo inacessível ao comum dos mortais, imersos na rotina da sobrevivência. Pouco afeitos às elevadas questões filosóficas. Mas a fé independe de raciocínio. Gosto de recordar um fato constante da vida de Santo Agostinho, o Bispo de Hipona e um dos maiores filósofos que a História registrou. Ele estava refletindo sobre o mistério da Santíssima Trindade e encontrando dificuldade para elucida-lo. Caminhava pela praia enquanto um garoto repetia um exercício que o intrigou: colhia água do mar numa conchinha e a despejava num pequeno orifício na praia. Depois de observar o trajeto do garoto por inúmeras vezes, Agostinho indagou: - "Garoto, o que você está fazendo?". E a resposta: - "Estou transportando toda a água do oceano para este buraco!". Agostinho riu e retrucou: - "Mas isso é impossível! Veja a dimensão do mar e a do furo que você fez com o dedo na areia!". Antes de desaparecer, o menino falou: - "É mais fácil eu colocar toda a água do oceano nesse buraquinho, do que você entender o mistério da Santíssima Trindade!".

Assim é que a fé supre a inteligência. Sinal de humildade dos miseráveis seres finitos, que nascem e caminham em direção à morte, aceitar que existe um Deus capaz de tamanha doação, que enfrenta injúria, suplício, martírio e morte. Morte infamante, pregado a uma cruz, para que se restabelecesse a aliança entre Criador e criatura.

Pensar sobre o significado do "Corpus Christi" é também oportunidade para questionar qual o nosso respeito em relação ao corpo invisível de irmãos excluídos da vida digna. Aumenta o número dos moradores de rua, dos desvalidos, dos desafortunados.

O exemplo maior que pode ser testemunhado em nossos dias está na atitude corajosa e insólita do Papa Francisco. Assim que assumiu a Cátedra de Pedro, a suceder o filósofo Bento XVI, que continuou como Papa Emérito, depois de renunciar ao Pontificado, ele resolveu acolher aqueles repudiados filhos do mesmo Deus.

Encarregou o Cardeal Konrad Krajewski, polonês que veio a Roma com João Paulo II e foi mantido na Santa Sé, mercê de suas qualidades. Os "homeless" de Roma puderam armar suas barracas sob a colunata de Bernini, ornamento arquitetônico admirado pelo mundo inteiro. Mediante o compromisso de as desarmarem às seis da manhã. Mas têm o seu café da manhã, a sua muda de roupa, o consultório médico e dentário. São tratados como gente.

Será que o "Corpo de Deus", já que nos colocamos na condição de "imagem e semelhança" a Ele, o Criador, não está também nesses sofridos semelhantes abandonados à própria sorte?

Honrar o Corpo de Cristo não é encarar cada ser humano como algo digno de respeito, de consideração, em tudo idêntico àquela compleição física sacrificada no Calvário?

Todos teremos igual destino: a morte. Ela não poupa ninguém. Mas para os que creem, ela é passagem. Sairemos deste estágio como um dia já saímos do acolhedor ventre materno para encarar a vida. E, se Deus permitir, encararemos a fase definitiva do abrigo no colo Dele.

Feliz "Corpus Christi" para todos os irmãos da única família humana em peregrinação pela Terra.

José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)