23 de novembro de 2024
OPINIÃO

Mãe judia, 1964


| Tempo de leitura: 3 min

Conto de Moacyr Scliar, "Mãe judia, 1964" é uma história comovente, escrita pela habilidade e sensibilidade de um mestre da literatura brasileira. O título revela fatias do enredo: na Porto Alegre da década de 1960 vive a protagonista, filha de judeus residentes no Bom Fim, bairro de imigrantes da capital gaúcha. Casada com Samuel, com quem teve um filho, a protagonista conta parte de sua história para uma imagem de Nossa Senhora, entronizada na capela de um sanatório para doentes mentais. Uau! Mas o que faz essa jovem senhora - que se diz não religiosa - nesse templo do catolicismo? Conta sua trajetória recheada de perrengues, sendo o principal deles a loucura.

Fora de prumo, conversa longamente com a imagem da santa: "Vais me desculpar, mas não pareces judia. Não uma judia como eu, pelo menos. Para começar, és bonita: pele lisa, feições delicadas, nariz pequeno, bem diferente do meu nariz judaico, grande, poderoso, um nariz que fareja mais coisas do que deveria farejar". E continua sua autodescrição: "Eu não sou feia, propriamente, mas estou muito castigada, pela idade e sobretudo pela vida".

O relato mostra flashes de suas origens e de sua vida numa família pouco acolhedora, com mãe autoritária e áspera, pai omisso e avô violento. Leitora desde a infância, refugiava-se nos livros de uma biblioteca escolar. Diz que procurava nos volumes a felicidade que não encontrava fora das páginas. Conta de seu casamento com o também judeu Samuel e do nascimento do filho tão desejado, Gabriel. Bom leitor como a mãe, o garoto revela talento para a escrita.

Na adolescência, preocupa-se com as "injustiças sociais", o que gera constantes atritos com a mãe, gerente de uma pequena malharia fundada por seu sogro na capital do estado. Nos anos imediatamente anteriores à deposição do presidente João Goulart, Gabriel parte com tudo para a militância política. O resto o leitor deve conferir nas páginas do conto, curtindo a ironia, o humor e as sutilezas de Scliar.

Parte da quadrilogia "Vozes do golpe", lançado em 2004 pela Companhia das Letras, por ocasião dos 40 anos da quartelada, "Mãe judia, 1964" divide a cena com outra ficção, "A mancha", de Luís Fernando Veríssimo, e dois relatos, "Um voluntário da pátria", de Zuenir Ventura, e "A revolução dos caranguejos", de Carlos Heitor Cony. Uma boa ideia - reunir quatro mestres da escrita e suas visões a respeito do assunto -, executada com o brilhantismo dos autores. Volumes de bolso, de leitura rápida e envolvente, "Vozes do golpe" revê parte da cena brasileira das últimas décadas, tão impactada e machucada pelo arbítrio e truculência.

Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre, em 1937, filho de imigrantes judeus que vieram da Bessarábia - região entre a Ucrânia e a Moldávia, na Europa oriental. Médico sanitarista, foi também professor no curso de Medicina da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Contista, romancista e cronista, publicou mais de 60 livros ao longo de sua reconhecida e premiada carreira. Ingressou na Academia Brasileira de Letras em 2003. O escritor morreu em 2011, aos 73 anos.

Fernando Bandini é professor de literatura (fpbandini@terra.com.br)