Temos algumas décadas para justificar nossa passagem pela Terra. Depois disso, partiremos e, depois de breve espaço temporal, ninguém mais se lembrará de nós. Não pensamos nisso com frequência. Nem com a intensidade com que deveríamos refletir sobre essa efêmera permanência num planeta que nem sempre respeitamos. Se isso ocorresse, talvez imprimíssemos maior qualidade a tudo o que fazemos.
Um bom exercício de reflexão é visitar cemitérios. Ali estão todos. Os seres amados, os esquecidos. Os que eram considerados insubstituíveis. Os poderosos, os invisíveis. Todos, sem exceção, condenados à inexistência física.
Visitar cemitérios também serve para reverenciar vultos inesquecíveis. Em Roma, a dois campos-santos contíguos, destinados a receber os despojos dos protestantes. Ficam já fora das portas da Cidade Eterna, junto à sombra da pirâmide de Caius Cestius, na Porta Paula, início da Via Appia. Estão em abandono, a nos recordar que o próprio registro da experiência vital de humanos que amaram, sofreram, depois partiram, é insuficiente para eternizar sua lembrança.
Num desses túmulos repousa Schelley, cujo corpo, segundo narra André Maurois em seu livro "Ariel", teria sido incinerado na própria praia em que, morto, o mar o lançara. Num outro, repousa outro poeta inglês, sobre o qual paira impenetrável mistério. Na laje que o cobre e sobre cuja enegrecida face encontram-se frequentemente esparsas flores anônimas, lê-se uma inscrição em inglês, que assim se traduz: "Aqui repousa o que de mortal havia num jovem poeta inglês que, no leito de morte pediu que e seu túmulo se gravassem apenas as seguintes palavras: Aqui jaz alguém cujo nome foi escrito na água. 24 de fevereiro de 1821".
Consta que o poeta que ali jaz é Keats, que viveu em Roma e cujo nome está numa placa de mármore a assinalar a residência onde morou, perto da Piazza d'Espagna. Lugar percorrido por todos os turistas, junto à opulenta escadaria que leva à Igreja de Trinitá dei Monti. Ali, próxima, a Via Condotti, na verdade Via Dei Condotti, centro glamouroso de lojas de luxo e das grandes marcas do consumo universal.
As Igrejas de Roma, todas elas, quase sem exceção, guardam os corpos mumificados ou incorruptos de seres humanos que, por suas virtudes, ganharam ou estão na fila de ganhar os altares.
Enquanto isso, nossos cemitérios tradicionais, aqueles que ainda têm mausoléus artisticamente elaborados em mármore, como era uso há dois séculos, sofrem deterioração que os fará desaparecer. Sem que se condoam os que têm o dever de preservar o patrimônio histórico, arquitetônico e cultural de sua cidade.
A concessão das necrópoles paulistanas à iniciativa privada ao menos trouxe a esperança de que os sepulcros de personalidades sejam mantidos em condições dignas daqueles cujos corpos ali foram enterrados. E que sirvam para que deles se lembrem os humanos, seres efêmeros e frágeis, mas que parece preferirem a superficialidade, a inconsistência, o vazio de vidas sem sentido.
O único sentido na peregrinação humana pela Terra é fazer o bem e demonstrar que valeu a pena ter nascido. O mundo precisa ser um pouquinho melhor pelo fato de termos estado nele. Transitoriamente, como todos os demais humanos. Mas na convicção de que, por nossa causa, ele ficou um pouquinho menos pior.
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)