16 de julho de 2024
OPINIÃO

Morangos mofados


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"Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada (...)". Assim começa "Além do ponto", um dos mais bonitos contos do gaúcho Caio Fernando Abreu, reunido em seu livro "Morangos mofados". Lançado em 1982, pela então prestigiosa editora Brasiliense, a edição foi um sucesso de público e de crítica. As histórias de Caio Fernando navegam pelos mares da contracultura da década de 1970, de movimentos contestatórios aos tempos bicudos de então, em que uma ditadura tacanha asfixiava a cena (ditaduras costumam, no atacado, tentar o controle do cenário geral e, no varejo, sufocar desejos e anseios individuais).

O escritor trata de muitos desses desejos reprimidos pela moralidade de então, como os relacionamentos homoafetivos, a experiência com substâncias psicoativas, a vida em comunidades alternativas. Escolhas e atitudes que contestavam o comum, o socialmente aceito. Como os personagens do conto "Os sobreviventes", em se embrulham no mesmo pacote ícones daqueles tempos. Marcam presença o escritor Carlos Castañeda, o filósofo Herbert Marcuse e o psiquiatra Wilhelm Reich. Ou a rapaziada do conto "O dia em que Urano entrou em Escorpião – Velha história colorida", que mostra a turma esotérica, ligada a búzios, tarô, astrologia, reunida na sala de um velho apartamento.

Dito assim, parecem personagens caricatos, mas não os vejo dessa maneira. Caio Fernando imprime neles uma áurea humana, um caráter pessoal, uma reflexão a respeito de opções e experiências por vezes contraditórias, tantas delas malogradas. "Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer (...)", continua o narrador de "Além do ponto", andando pela rua sob um aguaceiro brabo, seguindo firme a um encontro tão aguardado.

Mas não só na contracultura vivem os personagens do livro. No conto que dá título ao volume, "Morangos mofados", o protagonista mora num apartamentaço de uma metrópole brasileira, Integradíssimo ao meio, publicitário reconhecido e aclamado, vende sonhos de consumo. O escritor divide o conto, batizando as partes com os componentes de uma grande peça musical, com seu prelúdio, adágio, andante... O personagem, então sozinho naquele latifúndio urbano erguido em torre gigantesca, encara seus medos e suas dores.

O humor também se faz presente, ainda que acompanhado de certa melancolia, como no conto "Fotografias". São duas mulheres bem diferentes, Gladys, a "loura trintona e gostosa, 18 por 24 como se dizia antigamente", e a recatada Liége, morena magrinha que quer passar desapercebida. Ambas consultam, em dias diferentes, a mesma cartomante, e os vaticínios da velha pitonisa coincidem.

Nascido em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, em 1946, Caio Fernando Abreu cursou Letras e Artes Cênicas na Universidade Federal gaúcha, sem concluir nenhum dos cursos. Jornalista, passou pelas redações de "Zero Hora", "Veja", "Folha de S. Paulo" e "O Estado de S. Paulo". Dentre outros, publicou os livros "O ovo apunhalado", em 1975 e "Os dragões não conhecem o paraíso", em 1988. O escritor morreu em 1996.

Fernando Bandini é professor de literatura (fpbandini@terra.com.br)