A instituição da Eucaristia é um dos mais importantes legados do Salvador. Na quinta-feira anterior à sexta da Paixão, reuniu seus discípulos e ceou com eles. Durante a ceia, deu-lhes a beber vinho e a comer pão. Corpo e sangue de Jesus Cristo, presentes a cada celebração da missa, como presença eterna do Filho de Deus entre os humanos.
Não é simbologia ou mito. É a verdade misteriosa de quem se entrega em contínua imolação, para garantir aos seus irmãos adotivos o acesso à felicidade eterna.
Todos compreendêssemos o valor da Eucaristia e ela se tornaria prática diária. Quem é que pode fruir dessa intimidade com Deus, que adentra ao nosso corpo e oferece o remédio essencial para a alma?
Sempre me recordo de um diálogo mantido com judeus, dos quais extraímos a verdade contida nas Sagradas Escrituras, todo o chamado Velho Testamento, mas que continuam a aguardar a vinda do Messias.
Eles estranhavam que os chamados "cristãos" passassem frequentemente diante de seus templos e não entrassem. Se é verdade que Jesus está no sacrário, de forma corpórea, anímica e com Sua integral divindade, como se explica o aparente descaso de parte daqueles que professam a fé cristã?
A coerência com a religião adotada impõe um compromisso com a Eucaristia. O encontro do fiel com o Seu Deus é gratuito e acessível. Basta a vontade do que se considera crente.
Antigamente, a Semana Santa era realmente Santa. Um período de reflexão, para o qual havia um preparo prévio. A cerimônia da Via-Sacra, durante toda a Quaresma. O sábado anterior ao domingo de Ramos, em que se fazia a procissão do traslado. A bela imagem do Senhor dos Passos era levada até à Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, na chamada "procissão do depósito". No domingo à tarde fazia-se a procissão do "Encontro". Jesus e Nossa Senhora chegavam juntos, em seus andores, na Praça da Matriz, hoje Catedral Nossa Senhora do Desterro.
Havia a quarta-feira de trevas e, na quinta-feira Santa, as cerimônias da Instituição da Eucaristia e o Lavapés. Testemunho da humildade de Cristo, da assunção dos humanos como irmãos.
Na Sexta-Feira da Paixão, o calvário com as orações de uma comunidade que não hesitou em crucificar o seu Deus. O descimento da Cruz e a solene e tristíssima procissão do Enterro do Senhor.
Tudo com prédicas a cargo de oradores sacros que emocionavam a Igreja viva, repleta de compungidos fiéis, que assimilavam o clima enternecedor da celebração do sacrifício divino.
Os tempos modernos baniram as tradições. O cerimonial da Semana Santa é abreviado. A participação já não é a mesma. O silêncio que emudecia a cidade na Sexta-feira já não é completo. A programação laica prossegue em seu rumo inconsciente.
Entretanto, a sociedade continua a se autodenominar "cristã", ainda que não pratique aquilo que a deveria caracterizar: o amor de Deus sobre todas as coisas e o amor ao próximo idêntico ao amor próprio.
No dia em que se deveria celebrar com fervor e circunspecção o presente régio que Jesus nos oferece – a Sagrada Eucaristia - , haja ao menos um instante de reflexão para nos auto-perquirir se estamos sendo dignos do remédio para a alma, tão próximo a cada um de nós, às vezes tão distanciados de espíritos impregnados de interesses materiais e vãos.
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)