21 de dezembro de 2024
OPINIÃO

Olhos com menos brilho

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Veio ao meu encontro para uma orientação na área social. O mesmo ar de mansidão dolorida pelos poderes do mundo. Os olhos, contudo, com menos brilho.

Conhecemo-nos quando ele passou pela cadeia do Anhangabaú. Tão mocinho! Mal completara 18 anos. De outra forma, conhecia a mocinha, três ou quatro anos mais nova que ele. Carregava no ventre um filhinho seu.

Ao vê-lo, dessa vez, me veio a música Luzes da Ribalta de Charles Chaplin: "Vidas que se acabam a sorrir/ Luzes que se apagam, nada mais/É sonhar em vão, tentar aos outros iludir/ Se o que se foi, para nós não voltará jamais. / Para que chorar o que passou? / Lamentar perdidas ilusões/ Se o ideal que sempre nos acalentou/ Renascerá em outros corações".

Acabo de ler o livro Salvar o Fogo de Itamar Vieira Junior. Um romance épico e lírico, que traz as dores em torno da posse da terra, além de outras dores. Quando uma das personagens volta para o local, denominado Tapera, sente que está de novo envolta em luz e sombra, passado e presente condenação e salvação. Há no lugar também a dor do cemitério em que, esporadicamente, retiravam os ossos de quem não possuía jazigo perpétuo para enterrá-los numa vala comum. Ou seja, os pobres não tinham direito sequer à própria cova. "A terra jamais seria dos pobres, nem mesmo depois de mortos. Decorrido certo tempo, eram despejados como os fazendeiros faziam com os trabalhadores imprestáveis ou como na cidade, escutavam, com quem não conseguia pagar os aluguéis".

Itamar Vieira Junior se tornou um dos autores mais lidos do país, após o lançamento de Torto Arado, em 2019. O livro vendeu acima de 700 mil cópias. Mais do que apenas retratar e dar voz a um povo silenciado, Vieira Junior conta que esta também é parte de sua história.

Na época em que conheci o moço que veio ao meu encontro, década de 90, fora pego com uma quantia de droga para uso. Encontrava-se amargurado na cela, como tantos outros. Tinha responsabilidade aqui fora, pois seria pai. Dessa vez teria uma família. Não gostava de pensar na mãe, com problemas psiquiátricos que, aos seis anos, viu ser arrastada de casa de camisa de força e levada ao manicômio. Quando estava bem, afirmava ser ele o reizinho dela. O pai dizia que era só um tempo, mas foi o tempo todo até que faleceu. Já moravam do lado de cá. Colocou um buquê de flores roxas para ela em um canto do cemitério daqui. Sangue pisado na alma.

Pouco tempo depois da prisão, levado para tratamento médico, conseguiu fazer uma corda artesanal com lençóis – conhecida como "teresa" – e fugiu.

O motorista do ônibus, um conhecido. Pediu carona.  Foi direto para casa. Na rua ao lado, a viatura da polícia o aguardava.

Na semana posterior o questionei: "Tanta dificuldade e risco para escapar das grades e seguiu direto ao seu endereço?" Respondeu-me que sentia saudade grande da moça e dos movimentos do bebê na barriga.

O olhar de melancolia dele me marcou. Continuam assim, mas com luminosidade pouca. Desfez-se, por sua conversa, dos sonhos de antes.

Trabalha com carteira assinada, usa uniforme da firma. O que lhe falta, no entanto, é conseguir um pedaço de chão. O aluguel leva muito do seu salário.

Sorri e me diz que, se der certo, plantará, em frente, um pé de aroeira vermelha.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)