23 de novembro de 2024
OPINIÃO

Estrela santificada

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Em plena Segunda Guerra Mundial, quando os estúdios de cinema dos Estados Unidos não conseguiam distribuir filmes em diferentes mercados do globo, a 20th Century Fox tomou uma decisão arriscada: levar às telas a história de Bernadette Soubirous, que dizia ter visto a Virgem Maria em Lourdes, na França, aos 14 anos. A decisão era arriscada porque a distribuição seria sobretudo interna, nos Estados Unidos, em grande parte protestante.

Tomada a decisão, o desafio seguinte era encontrar a atriz correta para viver a moça. À época, a atriz Jennifer Jones estava sob as asas do todo-poderoso David O. Selznick. Ainda que tivesse aparecido em pequenas produções, a atriz, então com 24 anos, era um rosto pouco conhecido. Selznick, como havia feito com outras de suas descobertas, treinou-a por algum tempo, mudou seu nome (ela chama-se Phyllis Isley) e, nada incomum na indústria do cinema, mais tarde acabou se casando com ela.

Selznick era um produtor de faro, o homem por trás de "E o Vento Levou", o responsável por trazer Alfred Hitchcock aos Estados Unidos. No campo das estrelas, tinha levado ao estrelato nomes como Ingrid Bergman, Vivien Leigh e Joan Fontaine. Como lembra Thomas Schatz em "O Gênio do Sistema", "o complexo de Pigmalião de Selznick ganhava proporções enormes". O papel de Bernadette era perfeito, "uma dimensão de "intervenção divina" no fascínio de Selznick em promover estrelas", também pontua o escritor.

"A Canção de Bernadette", dirigido por Henry King, foi um grande sucesso e deu a Jones um Oscar de melhor atriz. Só não levou melhor filme porque concorria com "Casablanca". É uma produção sob medida para o público médio, religioso, em busca das perfeições e contrastes que Hollywood bem soube moldar na era dos estúdios, tão próxima da avalanche de transformações que viria sobretudo com o fim da guerra, a partir de 1945.

"Bernadette" encanta com sua inocência, com personagens sem aprofundamento, a começar pela protagonista, santificada desde os primeiros minutos. E mesmo quando nos coloca, tantas vezes, nos gabinetes e diálogos de homens poderosos que desconfiam e tentam sabotar o poder da moça religiosa, percebemos que não é desse reino, o humano, que o filme trata. O final, inclusive, reserva aos homens - sobretudo a um deles, interpretado na medida por Vincent Price - a derrota perante a fé, vendida como inabalável.

O abismo que parece separar os puros dos corrompidos pouco a pouco é anulado. Todos são postos no mesmo plano, tocam-se, inclinados a uma força maior. Emocionamo-nos em diferentes passagens. Jones, como Bernadette, é sempre indolor, não tem vergonha de se assumir ignorante. É uma daquelas personagens que ajudam a compreender o quanto o cinema clássico era o espaço por excelência para a germinação de mitos, aqui a serviço da religiosidade. É certo que muitos não duvidaram da presença de Bernadette.

Em 1946, sob a produção de Selznick, Jones interpreta a mestiça Pearl Chavez no faroeste "Duelo ao Sol", no qual termina, em cena famosa, em confronto com o próprio companheiro em tela, vivido por Gregory Peck. Três anos depois, dá vida a ninguém menos que Emma Bovary, a mulher de espírito livre de Flaubert, em "A Sedutora Madame Bovary". A atriz com rosto de boneca provava sua versatilidade. A imagem da santa ficava no passado.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; contato em ramaral@jj.com.br