21 de dezembro de 2024
OPÇÃO

Graça, muita graça. Graciosa!

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Quando entreguei em suas mãos, na noite de lançamento de meu primeiro livro, minha obra e meu autógrafo, com dedicatória, saí de perto e aguardei, do outro lado da sala, sua reação. E, confesso, foi exatamente o que eu imaginava e esperava. "Para Alcides e Graciosa, obrigado pela maravilhosa filha que vocês me deram! Um abraço. Nelson" A reação foi de um sorriso doce, seguida de uma respiração profunda e de saudade. Saudade dos quarenta e tantos anos que se passaram desde que ela dera à luz a mulher que está comigo há mais de quarenta anos. Não me disse uma palavra – e não era preciso -, o sorriso era suficiente para entender a alegria de seu coração. Confesso que não sei se leu o conteúdo do livro – um romance policial -, mas sei, com certeza, que a mensagem escrita, na primeira página, era muito mais satisfatória para ela do que qualquer outro texto interno.

Escrevi em outros livros, em parcerias com amigos de texto. Todos eles entregues em mãos de dona Graciosa. Sempre ela vinha até mim para elogiar o trabalho, que gostou do que estava escrito e que ia guardar aquilo com carinho. Jamais perguntei a ela se lera, por completo, o texto do primeiro livro. Nem a mim e muito menos a ela interessava isso, o importante era toda esta convivência, esta aceitação, esta participação de ambos, na vida um do outro.

Moramos juntos praticamente 27 anos e jamais houve entre nós uma discussão que seja. O respeito era tudo entre genro e sogra. Sentia que esta mulher nascera para servir e jamais reclamar do que fazia. Tinha a impressão de que gostava de ser assim: prestativa!

Viveu um casamento de 63 anos e foi, durante a maior parte deste tempo, enfermeira de Alcides, seu marido. Por problemas de saúde, ela cuidava dos remédios, sabendo o nome de cada um e os horários que deveriam ser tomados. Comentava com amigos o efeito de cada um deles e detalhava as composições impressas nas bulas, sempre preocupada com a saúde do marido.

Mas o que ela gostava mesmo de fazer era atender a campainha. Rápida, chegava ao portão antes de qualquer um e não negava auxílio. Quer comprando algo para ajudar pessoas ou entidades, quer dando um "trocado" com o mesmo objetivo. Era comum a campainha tocar e ouvir a voz de um motoqueiro, que vinha buscar contribuição que ela doara, via telefone.

Nas constantes trocas de pedaços de bolo, pratos de alimentos entre ela e Rita, minha esposa, era certo, horas depois, ela aparecer em nossa cozinha, pedindo licença para interromper nossa conversa e completando com "por um acaso, ficou aqui um prato marrom?" ou... "aquele pirex branco?" ou ainda "uma tigela que não encontro lá?" O "por um acaso" era marca de sua chegada até nós para pedir alguma coisa até "por um acaso você comprou banana hoje? Pode me arrumar duas? A minha acabou!"

O tempo, para ela, não importava. Jamais deixara de lado seus tricôs e a revistinha de palavras cruzadas. Um era usado no momento em que se cansava do outro. Pares de meias feitos de tricô, eram distribuídos a amigos, vizinhos, parentes. Mantas eram trabalhadas com carinho, sempre que ouvia dizer que alguma moça estava grávida. A manta tinha cor definida, quando ela recebia a informação do sexo do novo bebê.

Jamais vi esta mulher reclamando. Ultimamente ela dizia que estava feliz com o que as coisas que tinha e que realmente "curtira" a vida.

E foi nesta felicidade, que, preocupada em não dar trabalho aos outros, que numa manhã de domingo, exatamente num domingo de Carnaval, que ela se foi, em silêncio, quieta, emendando o sono com sua partida. Eu não estava em casa nesta hora, mas um telefonema de minha esposa, informando que Graciosa estava mal, me fez correr e, na hora em que abri a porta da sala e ouvi, no quarto, o choro contido de Rita de Cássia, que senti que ela se fora. Sem se despedir, sem uma marca de dor em seu rosto. Uma partida cheia de paz. Como ela gostava de viver.

Nelson Manzatto é jornalista (nelson.manzatto@hotmail.com)