Para boa parte da imprensa, 2023 será lembrado como o ano do casamento entre "Oppenheimer" e "Barbie", o tal fenômeno "Barbenheimer". É tudo o que a mídia adora: moda e meme. Um deles parece entretenimento passageiro e traz mensagens sobre nossa sociedade patriarcal; o outro parece adulto demais e cansa antes de chegar à metade.
Mas vamos ao que interessa: grandes filmes. Alguns, como tem sido comum, chegaram atrasados e foram direto para as plataformas de streaming. Caso do incrível "Compartimento Nº 6", de Juho Kuosmanen, ou de "Stars at Noon", de Claire Denis. Ambos, de diferentes formas, tratam de incursões de mulheres por terras distantes, em outros países, estrangeiras que em algum momento de suas jornadas se envolvem com estranhos.
O sentimento de não pertencer a um lugar, estar de passagem, também pode ser visto em "Pacifiction", de Albert Serra, sobre um diplomata que investiga um possível caso de teste de armamentos pelo exército francês nos mares da Polinésia. Em "Terra de Deus", de Hlynur Pálmason, acompanhamos um padre que aceita mudar para um povoado distante, onde uma igreja está sendo construída. Uma vez ali, após percalços, ele é atraído por uma mulher.
O contrário também se observa: filmes sobre pessoas enraizadas contra ameaças externas. É o caso, claro, do aplaudido "Assassinos da Lua das Flores", no qual o veterano Martin Scorsese conta a tragédia dos índios Osage, cuja terra, rica em petróleo, atrai o pior do homem branco. Não podemos esquecer de "Alcarràs", de Carla Simón, sobre uma família de agricultores que tenta resistir a empresários que querem terras para instalar painéis de energia solar, nem de "Holy Spider", de Ali Abbasi, no qual uma jornalista produz reportagens sobre prostitutas mortas por um serial killer no Irã e passa a enxergar em seu país um lugar doente, a certa altura, quando a população começa a apoiar o criminoso.
O olhar de personagens em trânsito - em fuga ou em busca do estabelecimento - alimenta outros filmes memoráveis como "O Assassino", de David Fincher, "Afire", de Christian Petzold, "Os Delinquentes", de Rodrigo Moreno e a pequena obra-prima de Jafar Panahi, "Sem Ursos", no qual o diretor iraniano volta a interpretar a si mesmo. Mais uma vez, Panahi demonstra não ter um lugar seguro no mundo que o recobre - um vilarejo perto da fronteira com a Turquia - e que este mesmo mundo é ainda o ambiente que lhe resta.
Que título estranho, não é? Compreendemos seu sentido ao longo do filme: no mesmo vilarejo, a população local criou a lenda de que ursos habitam suas redondezas, com a intenção de produzir medo nas pessoas. Panahi usa essa lenda a favor de sua mensagem: é preciso negar a falsidade e encarar o real. No seu caso, encarar as pessoas, a si mesmo, encontrar sua identidade. É o que faz o diretor ao nos tragar a uma história repleta de detalhes, sobre um artista que não aceita ir embora de seu país, a teocracia que o aprisiona. Soa, inclusive, e justamente por preferir o real, o oposto de "Barbie": enquanto no filme de Greta Gerwig é preciso cruzar uma fronteira, no de Panahi resta ficar e resistir.
Quanto ao cinema brasileiro, a safra também teve títulos de inegável qualidade, como "Pedágio", de Carolina Markowicz, "Capitu e o Capítulo", de Júlio Bressane, "Mato Seco em Chamas", de Adirley Queirós e Joana Pimenta, e "Regra 34", meu nacional favorito do ano, de Júlia Murat. Ousadia e diversidade. Não dá para reclamar. Que 2024 seja ainda melhor.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)