27 de dezembro de 2024
OPINIÃO

Reflexões de véspera


| Tempo de leitura: 3 min

Quando éramos crianças, o Natal demorava a chegar. Era uma espera ansiosa, porque significava uma pausa na rotina. Preparativos para a celebração que era essencialmente cristã. Começava com a montagem do presépio, que era algo feito a muitas mãos. Bem antes, semeava-se arroz para que ele brotasse e fizesse parte da paisagem. Na semana antecedente, recolhia-se serragem e ela era tingida de verde. Também outras plantinhas serviam para ornamentar o cenário.

<pstyle:ct\_TEXTOS\:ct\_TEXTO\_NORMAL><ctk:-10>Havia o belo costume de se promover as "visitas" do Menino Jesus às residências. Linda imagem ficava uma noite em casa de cada família. Uma reza, a distribuição de guloseimas e a pequena procissão até  à casa vizinha.

<pstyle:ct\_TEXTOS\:ct\_TEXTO\_NORMAL><ctk:-20>Era o "Natal do Menino Jesus". Pais religiosos nunca incentivaram muito sua prole a acreditar em Papai Noel. Natal significa nascimento de Jesus Cristo, o filho de Deus, o Salvador. Não era o comércio alucinado de hoje.

<pstyle:ct\_TEXTOS\:ct\_TEXTO\_NORMAL><ctk:-10>Tanto que hoje, a véspera, era destinada aos últimos singelos preparativos e a presença obrigatória à "Missa do Galo". Que era, religiosamente, celebrada à meia noite.

<pstyle:ct\_TEXTOS\:ct\_TEXTO\_NORMAL><ctk:-10>No dia seguinte, a entrega dos presentes simples, daquilo que era possível entregar aos filhos, sem prejuízo do sustento doméstico.

<pstyle:ct\_TEXTOS\:ct\_TEXTO\_NORMAL><ctk:-10>Quanta diferença em poucas décadas, que nada significam na dimensão histórica do percurso humano pelo planeta.

<pstyle:ct\_TEXTOS\:ct\_TEXTO\_NORMAL><ctk:-10>Natal é tratado como feriado qualquer. Com viagens, com bebedeira, com comilança. Aquela troca obrigatória de lembranças com pessoas das quais a gente nem sempre se lembra durante o restante do ano.

<pstyle:ct\_TEXTOS\:ct\_TEXTO\_NORMAL><ctk:-20>Véspera de Natal. Oportunidade para pensar qual o caminho que a humanidade tomou nesse desgoverno, neste descompasso, neste desastre que tem sido o convívio. Pensar em guerra, no século XXI? Depois da dolorosa experiência de dois conflitos mundiais no século XX? Pensar em permanência da polarização entre grupos antagônicos que enxergam o mundo de forma diversa e que fazem disso motivo para estranhamento contínuo. Pensar que problemas insolúveis desafiam a pretensa racionalidade do bicho-homem: os inclementes maus tratos contra a natureza, que se vinga da forma que pode: com eventos extremos, causadores de mortes e de destruição. Em "Cracolândias", atestado da falência dos homens em relação a problemas plenamente previsíveis: a entrega do jovem à droga e à ilicitude, diante de uma escola que não atrai, antes assusta e afugenta.

O que pedir de "presente de Natal" para a humanidade em 2023? Que ela tenha juízo. Que seja sensata. Que procure a solução pacífica dos conflitos e não a agressão, a ira, a violência.

Que os humanos se enxerguem todos como semelhantes, como irmãos, não sendo condição digna deixar que criaturas como nós ocupem as vias públicas, durmam ao relento, não tenham teto, nem comida, nem vestimenta, nem perspectiva de vida digna.

Que se multipliquem, no seio da sociedades, os homens de boa vontade. Boa vontade para reestruturar o pacto social, qualificando-o com a caridade, que é algo tão em falta no convívio em nossos dias, como a ética na politica brasileira.

É surreal constatar que o "celeiro do mundo" deixe milhões de filhos a passar fome. Que um país que tem mais gado do que gente, cuide de suas cabeças "puras de origem", alimentando-as condignamente, vacinando-as, acompanhando suas coberturas e apurando sua raça, enquanto deixa crianças perecerem por inanição e se não incomode mais com a legião de mendigos que assolam todas as cidades.

A véspera de Natal deveria ser o dia da consciência tranquila. Mas quem é que poderá invocar essa condição, com tamanha infelicidade à nossa volta? O que significa para nós, neste complexo e surpreendente 2023, um cumprimento de "Feliz Natal"?

JOSÉ RENATO NALINI é reitor de universidade, docente de pós-graduação e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI