21 de novembro de 2024
OPINIÃO

Abismo entre garfos e panelas

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Bem ou mal, em um carrinho de espetinhos na rua ou em um restaurante três estrelas do Guia Michelin, comemos para sentir prazer. Mas não só. A maioria das pessoas - sem acesso ao restaurante três estrelas - come porque tem fome. Comer, para elas, é uma necessidade, significa parar em pé. Para outras, um grupo menor, comer é algo tão comum que se esquece da fome. A ação torna-se parte de uma rotina. Para um grupo ainda menor e endinheirado, comer tornou-se um ritual, uma celebração artística.

Como mostram os filmes "Fome de Sucesso" e "O Menu", algumas pessoas precisam degustar o diferente, lançar-se em uma operação artística que começa pelos olhos e envolve "devorar" o chef (o artista) por trás da refeição (a arte). Poderosos, esses chefs são malvados e possuem contornos psicóticos. São vilões. Eles ocupam o centro desses dois filmes lançados recentemente, uma produção tailandesa de Sitisiri Mongkolsiri e outra americana, conduzida por Mark Mylod e lançada em 2022. Nos dois, algo em comum: a classe alta que paga para devorar o "desenho do prato", o "contorno do filé" e a "pincelada do tempero" em algum momento também será, literal ou metaforicamente, devorada.

Ao abordarem a alta culinária como ambiente exclusivíssimo, um clube ao qual poucos têm acesso e que esconde, nas cozinhas, um ambiente militar e humilhante, esses filmes expõem, em contraponto, uma crítica social que não mira a arte em si, mas seus consumidores. Quem paga altas cifras para consumir pratos inimagináveis à classe pobre, ou mesmo à maioria que se contenta com arroz e feijão, soa semelhante àqueles que pagam valores astronômicos em leilões de arte, apenas pelo prazer de enclausurar o objeto em sua redoma.

Nos dois filmes, os chefs interpretados por Nopachai Chaiyanam e Ralph Fiennes oferecem aos seus clientes experiências únicas. Ambos, sobretudo "O Menu", não escondem um toque propositalmente inverossímil, linhas de um filme de horror, e tentam retirar daí o material condensado que explora o real pela via do exagero. Mesmo partindo de materiais e personagens fictícias, acenam ao real, a esse capitalismo selvagem que nada poupa, menos ainda a comida pela qual apenas alguns ricaços podem pagar.

É na mesa posta, na mesa dada a apenas alguns, que se serve uma realidade que extravasa, o ambiente intocável, tal irreal para a maioria que termina por ser opressor, assustador, com seus líderes psicóticos a conduzir um "espetáculo" que termina indigesto. Paul (Chaiyanam) serve um prato que se assemelha a um totem com sangue espirrado, com um pequeno pedaço de carne, em uma celebração que ao centro tem um militar.

Ao longo de "Fome de Sucesso", Paul, o todo-poderoso, cruza o caminho de Aoy (Chutimon Chuengcharoensukying), a jovem protagonista convidada a integrar o time dele. Sua marca não esconde a hipocrisia do sistema: Hunger ("fome"). Tem-se o jogo conhecido: a moça que cozinhava no pequeno restaurante da família, para pessoas de classe baixa, acaba tendo de encarar o insuportável universo simétrico e aparentemente asséptico do chef mais famoso e, pior, a certa altura ela própria assume a linha de frente e joga para a torcida. Experimenta, por alguns momentos, o que é ser uma artista a ser devorada, a se deixar devorar.

Em "O Menu", a protagonista (Anya Taylor-Joy) é também alguém de fora, quase uma intrusa, no restaurante ilhado do poderoso Chef Slowik (Fiennes). A experiência única de degustação torna-se aos poucos uma experiência macabra. Mais do que em "Fome de Sucesso", que acertadamente reserva o alto de sua crítica social aos planos em detalhe de bocas mastigando a carne e deixando escorrer o molho pelos cantos, "O Menu" permite que a vingança do chef, vilão assumido, concretize-se com a morte de seus clientes e convidados. Nos dois filmes, escapar da redoma de loucura significa recuperar a própria essência, ou fazer o pedido mais simples que um chef renomado nunca esperaria receber.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)