16 de julho de 2024
OPINIÃO

Nas asperezas da vida

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A primeira vez que a vi, há dois anos mais ou menos, foi na praça. Sozinha e irrequieta. As pessoas, que passavam, a observavam com estranheza. Se alguém lhe dirigisse um comentário desagradável, gritava impropérios. Seus cabelos longos da cor de ébano balançavam ao vento. Em momento algum se aproximava de outros prostituídos ou prostituídas.

Apesar de sua maneira de ser arredia e na defensiva, tentei me aproximar, porém nem me enxergou. Era da insociabilidade. O corpo semidesnudo, os olhos e o coração, no entanto, me pareciam vestidos de armadura.

Soube, algum tempo depois, que apanhara. Rebelou-se contra alguma determinação do submundo e lhe rasgaram o rosto e o corpo e lhe quebraram dentes.

Há algumas semanas, na Magdala, ela apareceu embriagada e aos tropeços. Não nos conhecia e nem o espaço. Entrou à procura do banheiro. Sujara-se toda na rua. Amparada por outra travesti, foi embora dizendo palavras desconexas. Ao passar por mim, no entanto, abraçou-me, encostou a cabeça no meu peito e disse: "Ah, batida de coração de mãe!" Que doloroso, meu Deus! Tentava conseguir, sem dúvida, ao longo dos seus quase quarenta anos, o colo que – não sei as razões – lhe faltou pequenina.

Os excluídos sempre me remexem por dentro. Em 12 de outubro, foram 41 anos das Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena – hoje sob a direção da Rosemary Ormenesi – e, em 22 de novembro, 28 anos da Associação Maria de Magdala. Padre Márcio Felipe de Souza Alves, nosso Assessor Espiritual, desfeito de preconceitos, nos ensina sempre a estar com os braços abertos em nome de Jesus, ou seja, "a nossa vida precisa ser reflexo do que celebramos".

Tenho certeza de que Deus me colocou nos caminhos de gente excluída ou colocou gente excluída no meu caminho, mesmo Ele não precisando de mim, mas para me fazer mais dEle.

Sábado passado, na Missa no Carmelo São José, celebrada pelo nosso Bispo Emérito, Dom Vicente Costa, em sua homilia, a respeito da colocação de Jesus no Evangelho de São Mateus (14, 1.7-11): "Porque quem se eleva será humilhado e quem se humilha será elevado", comentou que, para experimentarmos Deus, precisamos nos esvaziar de nós mesmos. Se estivermos cheios de nós mesmos, cantando as nossas glórias e nossos poderes, Deus não caberá.

Na questão dos excluídos, Deus foi fazendo um exercício comigo para me libertar de minhas ideias pré-concebidas e para me mostrar que a obra é dEle e não minha. Falta-me muito ainda! Quase sempre, somos apenas o ombro que carrega a ovelha machucada por sua história até Ele.

Em um encontro nacional da Pastoral da Mulher, ouvi de Dom José Maria Pires (1919-2017), foi Arcebispo da Paraíba, que uma pessoa, mesmo que esteja envolta pela fuligem do cotidiano, não perde a sua essência de ser humano aos olhos do Pai.

Voltando à travesti. Uma hora depois, passou por nós, de banho tomado e vestes diferentes. Disse que não usara droga, estava sob o efeito de bebida que contém etanol. Sem ela não consegue, por suas lembranças e realidade, sobreviver.

Sentimo-nos impotentes. Isso também nos ensina a nos esvaziarmos.

Que possamos, pelo menos, em nossas impossibilidades, oferecer, nas asperezas da vida, Deus que passa na brisa suave, como aconteceu com o profeta Elias (I Reis 19, 12).

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)