A essa altura, é provável que você odeie Woody Allen. Como não odiar alguém acusado de abusar da própria filha, então uma criança? Também é provável que, perante às acusações feitas a Allen, como a de ter casado com a própria filha (o que é mentira), você não queira mais assistir aos filmes que Allen escreveu e dirigiu.
Entendo. Também odeio pedófilos. E talvez não devesse, nesta coluna, tratar de questões que envolvem um suposto abuso infantil. No caso Woody Allen/Mia Farrow, o que se colhe, até o momento, é uma guerra de narrativas. Teria esse cineasta genial abusado da própria filha? Ao que tudo indica, segundo uma investigação feita à época, nos anos 1990, não. Dá para afirmar isso com todas as certezas, acusando Farrow de ter manipulado a menina? Também não.
Ficam algumas dúvidas. Com "Woody Allen - A Autobiografia", leitura obrigatória para nossos tempos de "caça às bruxas" e cancelamento fácil, tendemos a acreditar em Allen. Seu relato é sincero, obviamente parcial, com detalhes sobre o relacionamento com a filha adotiva de Farrow, Soon-Yi Previn, e os dias em que sua vida virou um inferno com a acusação de abuso à pequena Dylan Farrow. E, claro, boas doses de sagacidade e cinema.
Cancelar a arte de Woody Allen parece-me uma bobagem. Cancelar o homem, caso não se possa conceder a ele o benefício da dúvida, é justo. E, independente da existência ou não de um crime, teremos de viver com uma certeza: sua obra ficará para sempre.
Tenho a maior parte dela na minha estante, em DVDs e Blu-rays. Recorro com frequência às suas imagens e frases. Seus roteiros têm assinatura. Sua direção pode parecer fria, "fácil", e é sempre elegante. Por um longo tempo, encerrado desde que as acusações de abuso voltaram a pipocar na imprensa, ele dirigia sem parar, um ou até dois filmes por ano.
Quando jovem, no fim dos anos 1960, Allen percebeu que precisaria dirigir suas obras para obter total controle criativo. Mais: precisaria de um produtor consciente e um bom contrato para lhe garantir o corte final. Conseguiu tudo isso se mantendo fiel à sua forma, mesmo ao migrar de gênero, fazendo filmes muito diferentes em uma mesma década, como o engraçadíssimo "Bananas" em 1971 e o bergmaniano "Interiores" em 1978.
Nem um nem outro, nem a comédia escrachada nem o drama profundo: o melhor de Allen está no meio, na comédia adulta sobre gente no divã, sobre miseráveis amáveis e amantes de ocasião, sobre trocas de casais e toda a confusão à qual vida se resume - com pitadas de Dostoiévski e Groucho Marx, golpes de niilismo e rostos famosos.
Em todos os filmes nos quais atua - incluindo alguns que não dirigiu, como o ótimo "Testa-de-Ferro por Acaso" (justamente sobre a imbecilidade do macartismo) -, Allen é ele mesmo. O mesmo homem, a mesma personagem, o baixinho nova-iorquino hipocondríaco (em "Hannah e Suas Irmãs") e o artista em crise (em "Memórias", seu "Oito e Meio").
Da fase Mia Farrow há algumas pérolas como "Zelig", "Broadway Danny Rose", "A Era do Rádio", "Maridos e Esposas" e, claro, "A Rosa Púrpura do Cairo". No último, a atriz interpreta Cecília, cuja única fuga, nos tempos da Grande Depressão, é o cinema de rua e seus clássicos. Certo dia, depois de ver o mesmo filme inúmeras vezes, Cecilia começa a interagir com o herói da tela, que sai do plano da ficção e se torna seu amante.
Autocrítico como é, Allen provavelmente não revê seus filmes. Menos ainda, podemos supor, aqueles que fez com a ex-mulher. Cancelar sua obra implica jogar fora alguns momentos valiosos da sétima arte. Caso fique comprovado o crime, espero que ele pague como prevê a lei. Ainda assim, seus trabalhos seguirão vivos - inclusive os que fez com Mia Farrow.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj,com.br)