21 de novembro de 2024
Opinião

A importância das cores

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É comum atribuirmos a falta de cor à falta de vida. Por isso, o pálido está relacionado à doença e à morte. Um mundo sem cor, um mundo diferente do que conhecemos, soa-nos estranho. O que explica, creio, a dificuldade de algumas pessoas com os filmes em preto e branco, os filmes cinzas: eles não se parecem com o mundo que enxergamos.

O cinema nasceu preto e branco. As cores não demoraram a surgir. Logo nos primórdios, era comum a pintura da película à mão, com determinados personagens e elementos de cores variadas. O efeito "caseiro" era facilmente denunciado. Mais tarde, diferentes sequências passaram a ganhar cores específicas em filmes de curta ou longa-metragem, por volta dos anos 1900 e 1910, com película tingida. Como nos lembram Jacques Aumont e Michel Marie no "Dicionário Teórico e Crítico de Cinema", o tingimento azul era utilizado para cenas de noite, o amarelo-ocre para interiores com luz elétrica, o vermelho para o fogo.

Logo surgiram interessantes experimentações, como na versão muda de "Ben-Hur", de Fred Niblo, na qual as cenas religiosas, com Cristo, são compostas com cores - em contraponto à maior parte do filme. Mais tarde veio o Technicolor e seu efeito berrante. Por décadas, cores e preto e branco dividiram espaço. Os filmes coloridos clássicos sempre foram menos realistas, sempre denunciaram a atividade mecânica e a falsidade de seu tempo.

Em toda forma de arte, a cor comunica, excita emoções, dirige o olhar a determinado elemento, ajuda a explicar uma personagem ou situação. A impossibilidade de enxergar o mundo em cores, explica Rudolf Arnheim em "Arte e Percepção Visual", priva alguns animais "da mais eficiente dimensão de discriminação". Ou seja, as cores permitem diferenciar elementos. "Discriminação", nesse caso, em seu sentido primeiro, fora da significação social dada à palavra, ou seja, a discriminação racial.

Em um filme, quando um cineasta utiliza uma determinada cor para salientar uma característica de uma personagem, ele está fazendo um julgamento dentro de seus limites artísticos, dentro da fabulação que lhe permite criar algo e lhe conferir vida naqueles mesmos domínios. Nem todas as pessoas que usam vermelho estão apaixonadas. Em um filme, contudo, tal cor em determinado contexto pode apontar a esse sentimento.

"As Duas Faces da Felicidade", de Agnès Varda, joga com a alteração de cores para falar de sentimentos. Em cena, um homem casado descobre a felicidade também fora de seu casamento, ao conhecer outra mulher. Ou mais, ele descobre que a felicidade completa envolve viver com ambas, mulher e amante. Ao longo do filme, o verde e o amarelo predominam no ambiente afastado, no campo, espaço brilhante que simula o sonho. Na cidade, o branco e o azul servem de contraponto. A certa altura, a mulher do protagonista passa, a exemplo da amante, a adotar as cores que predominam na cidade. Aos poucos o vermelho dá as caras, como no encontro entre o homem e a nova companheira em um café.

O libertário filme de Varda é ambientado em diferentes estações. Inicia com os girassóis, sob a luz forte do verão, e termina com o frio e as folhas secas espalhadas no solo de outono. O homem e a família reconstituem-se. Não são os mesmos. Algo mudou. As cores configuram sentimentos e nos ajudam a compreender o que não passa pelas palavras. "As Duas Faces da Felicidade" é apenas um exemplo de como as cores podem fazer a diferença.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)