27 de julho de 2024
Opinião

Da minha janela

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"Da Minha Janela" é título do livro de Otávio Júnior - Companhia das Letrinhas - com ilustração de Vanina Starkoff. Em 2020, foi eleito um dos melhores livros do ano pela revista "Crescer" e, dentre outros prêmios, venceu o Jabuti na categoria livro infantil.

Na contracapa há um questionamento: "Não é interessante pensar que nenhuma janela do mundo tem a mesma paisagem?" Da janela do livro se vê uma favela.

Enquanto lia, recordei-me das adultas que conheço, vindas meninas do Nordeste.

As duas, com 10 anos, tinham em comum avistar da janela da casa de taipa, a terra seca. Assim como sua família sonhavam com a chuva. O pai era um forte, como escreveu, em "Os Sertões", Euclides da Cunha: "A seca não o apavora. (...) Apesar das dolorosas tradições que conhece através de um sem-número de terríveis episódios, alimenta a todo o transe esperanças de uma resistência impossível".

Um veículo percorreu dois Estados, vendendo a ilusão de estudo para filhas de dez anos, que iriam se formar e retornariam doutoras. Alguns pais, que passavam fome, com o pasto seco, o gado morto, sem talo de capim, acabaram por aceitar a troca de alimentos e dos garrafões de água pelas filhas. Foram em seis na viagem. Amigas de triste-sina. Somente no lado do motorista havia janela. Mudas, com lágrimas presas ao coração, observavam os atalhos estreitos, por onde passavam, que fazia a poeira envolver a perua.

Pararam algumas vezes, em bar da beira da estrada, para ir ao banheiro e comer algo. Não tinham mais fome e sede. Sem conhecer a palavra e a história da escravidão, sentiam a angústia de quem era levada ao pelourinho.

Após dois dias de viagem, os brutos que as empurravam para sair logo do local em que se detinham, avisaram-nas que estavam chegando e alertou que não saíssem correndo e nem gritassem, pois haveria mais gente no lugar para pegá-las e apanhariam. Eram pequenas ainda, uma delas conseguira trazer a boneca de sabugo de milho, como teriam forças para reagir? Encontravam-se com medo, fatigadas e tristes.

Da janela veículo, estacionado dentro de um estabelecimento comercial, as que sabiam ler viram na placa: "No próximo sábado, seis meninas irão a leilão". No dia seguinte, a foto de cada uma na placa, com as fotos dela e a indicação de que as apostas deveriam ser feitas com a "patroa".

Como escreveu, em "Grande Sertão Veredas", Guimarães Rosa: "Sertão é o sozinho. (...) "O que não é Deus, é estado do demônio".

Assim como a seca suga o solo, tiveram o corpo sugado por homens inescrupulosos, para enriquecer a "patroa", que as tratava com indiferença e estupidez. Eram mais algumas, meninas anônimas, que ali estavam para o comércio dela que saciava instintos.

Aos dezoito anos, as duas que conheço e se tornaram próximas, não sei se escaparam ou se as deixaram sair por não serem mais novidade, vieram para cá.

Avistei-as pela janela do coração. Não vi as paisagens delas, mas sei que dói. No entanto, graças a Deus, deste lado, casaram-se e criam seus filhos.

No livro há um questionamento, "Se a sua janela fosse mágica e você tivesse o poder de criar coisa novas, o que gostaria de ver através delas?" Acrescento: o que você gostaria de criar para meninos e meninas que são usados para saciar desejos sexuais de adultos?

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)