Infância e farmácia podem ter finais de palavras parecidos, mas significam rejeição, medo, injeção, dor, choro. Mas as farmácias dos anos 50 tinham uma curiosidade especial: os farmacêuticos eram como se fossem médicos da família, que faziam visitas em casa, aplicavam injeções e conquistavam os pacientes, principalmente se fossem crianças, por conta do medo e adultos, por conta da confiança nos mesmos. Na minha infância, me lembro de dois médicos: dr. Fredini e Toledo. Depois deles, só seu Moacyr e seu Arquimedes, farmacêuticos próximos à minha casa. Não sei porque, mas os farmacêuticos me inspiravam maior confiança, talvez por brincarem mais, por rirem com a gente, ao contrário da seriedade dos médicos. E não foi só uma vez que vi seu Moacyr na minha casa, ou examinando um ou aplicando injeção em outro. E tanto este como seu Arquimedes, que na verdade se chamava Lázaro de Almeida e que foi um dos mais populares vereadores de Jundiaí, tiveram ações fundamentais em minha vida: Moacyr cuidou de um ferimento em minha cabeça, quando, nos meus 8 anos de idade, joguei um bambu na goiabeira para colher a fruta mais linda que tinha no pé e este caiu na minha cabeça, provocando sangue, desespero e lágrimas. A outra, também regada a sangue e lágrimas, ocorreu com meu irmão Ademir, que rasgou o braço num arame farpado e acabou levando um ponto no lugar ferido, ponto este, de responsabilidade de seu Arquimedes. Talvez estas ações tenham provocado em mim um interesse pela área, tanto que meu primeiro emprego foi atrás de um balcão de farmácia, vendendo remédios, tentando ler receitas, sem conseguir, mas traduzidas por seu Moacyr, atento em me explicar para que determinado remédio era bom. E foi neste trabalho que percebi a agitação destes farmacêuticos, mas a calma com o paciente, ouvindo histórias, fazendo perguntas, medindo pressão e temperatura, mas o que me assustava era a hora em que ele pegava o palito de madeira para examinar a garganta. Só de sentir o palito tocando minha língua, já sentia ânsia. E foi esta calma e paciência que me permiti aprender a aplicar injeções e acabei arrumando alguns pacientes. E foi também, nesta função, que conheci seu Orlando, dono da droga Orlando, que ficava no centro da cidade. Era ali que eu ia praticamente todos os dias, comprar os remédios que faltavam nas prateleiras da farmácia de seu Moacyr. E o comum nos três era a agitação e a paciência. Pelo menos era isso que sentia. Quantas vezes via seu Moacyr correndo atrás do balcão em busca de um remédio, mas a calma seguinte, em explicar o que significava aquele produto, a orientação para se tomar e o sorriso de confiança recebido do paciente. Seu Arquimedes era igual: o atendimento às crianças sempre terminava com um passar de mão pela cabeça, desajeitando os poucos cabelos ou o apertar da bochecha, desde que o paciente fosse uma menina. E nos meus 14 anos de idade, com meu primeiro emprego, via seu Orlando atravessando a farmácia em busca de um remédio, subindo a escada para pegar o produto láááááááá em cima... e o descer pacientemente para orientar o freguês. Foram três pessoas que marcaram minha vida, exatamente por este estilo de agir. Seu Arquimedes dedicou sempre parte de seu tempo à política, seu Orlando vendeu sua farmácia a uma família de chineses e me chamou para ajudar a contar os produtos das prateleiras, para avaliar o estoque existente e seu Moacyr cansou do balcão, fechou as portas, vendeu o prédio e viu o mundo seguir seu rumo. Deixei de lado a difícil arte de cuidar dos doentes e me transferi para o campo das letras, seguro de que não colocaria em risco a vida das pessoas... até porque não tinha a paciência destes anjos de carne que Deus colocou no mundo!
Nelson Manzatto é jornalista (nelson.manzatto@hotmail.com)