23 de novembro de 2024
Opinião

Difícil é fazer comédia

Por |
| Tempo de leitura: 3 min

A frase é famosa e costuma ser atribuída a Edmund Gwenn: "Morrer é fácil, difícil é fazer comédia". Já foi repetida por Billy Wilder, mestre do gênero no cinema, e por Jô Soares, que tinha, entre seus filmes favoritos, obras fundamentais da comédia como "Um Assaltante Bem Trapalhão", de Woody Allen, e "Os Boas Vidas", de Federico Fellini.

Sempre quando alguém me pergunta qual o gênero mais difícil de fazer, a frase atribuída a Gwenn logo vem à cabeça. A comédia é o terreno mais arriscado. Ou se faz rir ou a experiência - no cinema, no teatro, na televisão, na internet - pode cair com facilidade no constrangimento. Fazer rir é um exercício hercúleo que exige equilíbrio, boas ideias, boa comunicação, não ter medo da idiotia e não fugir do sarcasmo.

Algumas das melhores comédias da História do Cinema aceitam esse terreno perigoso e vão além: ainda que o objetivo primeiro seja fazer rir, elas podem nos levar a experiências variadas e abordar temas complexos. Alguém já disse que, com "A General", Buster Keaton fez o melhor filme de todos os tempos sobre a Guerra Civil Americana. Pode ser.

Não duvido também que um filme como "Macunaíma", de Joaquim Pedro de Andrade, do livro de Mário de Andrade, represente melhor as misturas e turbulências do Brasil dos anos 1960, sob uma ditadura, que outros filmes dramáticos do mesmo período.

Às vezes é preciso subverter a dita normalidade para chegar a uma representação correta - não necessariamente fiel - de um fato ou momento. Como representação, o alvo carregará distorções e, através delas, o "real" incomoda. Não à toa, o primeiro alvo dos comediantes costuma ser os poderosos. Para os antigos reis, era preciso controlar o comediante, torná-lo parte da corte, chamá-lo de "bobo" - à medida que suas bobagens explicavam e bem o meio em que ele colocava os pés, espaço em que política e riso são inseparáveis.

Ao ver um filme brilhante como "O Carrasco", de Luis García Berlanga, é impossível separá-lo da Espanha franquista da época, na primeira metade dos anos 1960. A comédia ácida de Berlanga trata de um homem que, contra sua vontade, devido a uma série de situações, acaba se tornando um carrasco, ou seja, o profissional pago pelo Estado para matar condenados à morte. Do tema obscuro, Berlanga retira figuras pequenas, pessoas comuns e medrosas, pequenos monstros sociais formados ou em formação, para nos dizer que o grande problema está no covarde que se deixa enredar pelo sistema de toques kafkianos. E Berlanga faz isso no terreno da comédia, da qual o franquismo é alvo.

Outro caso interessante, também de um cineasta espanhol, mas filmado no México: "Ensaio de um Crime", do mestre Luis Buñuel, trata de um assassino que não consegue concretizar seus crimes. A cada investida contra uma mulher, algo ocorre, seu plano é sabotado. Em cena, o homem impotente está preso às suas manias, ao seu labirinto.

Esse tipo de comédia de crimes e assassinatos remete-nos a filmes anteriores como "Ladrão de Alcova", "Este Mundo é um Hospício", "Monsieur Verdoux" e "Quinteto da Morte". Em cada um deles, de Lubitsch a Mackendrick, somos levados a pensar que praticamente tudo cabe na comédia. Até Adolf Hitler (em "Ser ou Não Ser" e "O Grande Ditador"), até um campo de concentração (em "Pasqualino Sete Belezas"). Inclusive a religião. É o caso de "Habemus Papam", uma crítica mordaz à Igreja Católica. Em cena, um novo papa tem uma crise, foge, descobre o teatro e só assim encontra forças para assumir seu posto.

E nem sempre as gargalhadas virão em exagero. A grande comédia é aquela que sabe impregnar todo um universo com sua crítica e malícia, na qual a pompa não oculta imbecilidades, na qual a suposta leveza não evita que enxerguemos o pior.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)