Observei o menino, na véspera da Semana Santa, brincando em um terreno baldio nas proximidades de sua casa. A mãe cuida o máximo dele e da irmã, dentro do possível, pois precisa trabalhar para manter a família. Dá muitos conselhos sobre a rua e o mundo; proximidades e distâncias; cheiros estranhos e ilusões... Enquanto ouve, recorda-se das madrugadas em que ele e a irmã seguem para visitar o pai no presídio. Gosta do abraço paterno, contudo se sente de coração apertado no lugar cheio de grades e alarido e na despedida. Antes de ser preso, gritava por qualquer coisa, saía no final da tarde e só retornava na madrugada. Agora está mais atento ao que ele fala.
Vivemos em colapso diante dos desatinos humanos.
Naquele dia em que os admirava, brincavam de pizzaria. Um recebia os chamados, a menina de tranças preparava a pizza, enquanto a outra separava os temperos e o menorzinho colocava no forno. Ele era o entregador. Próxima encomenda: "biqueira" da Rua Pablo. De imediato, reagiu e disse que não. Seu pai fora preso em uma delas. Perdeu o emprego, tentou outro, estava difícil por causa da pandemia e aderiu ao ilícito para a família não passar fome. A mãe também ficou desempregada na época. Seus olhos se encheram de lágrimas. O vizinho disse que quem entrava nisso não saía mais. Aconteceu com o filho dele, que retornou morto de uma rebelião. Disse aos demais que "biqueira" não era assunto para diversão. Tinha dúvida se o pai voltaria para casa um dia. Escutei emocionada.
Levei-o no meu coração. Na quarta-feira, o Padre Ismael Felix me enviou a música "Diga-me como ser pão" de Salomé Arricibita: "... Diga-me como me aproximar/ De quem não tem mais ânimo/ Que acha que é fantasia/ O rir, o amar... (...) Diga-me como ser pão/ Tu que de mim fazes teu reflexo/ Que abraças a minha fraqueza (...) Diga-me como ser o pão/ Que cura a injustiça..."
Em sua homilia na Quinta-feira Santa, o Padre Márcio Felipe de Souza Alves comentou que o Senhor nos convida a "EUCARISTIZAR", ou seja, dar graças e louvores ao Santíssimo Sacramento e, como Ele fez, nos abaixar para lavar os pés do próximo, seja ele quem for. Jesus lavou o de Judas também, que era um criminoso. Acrescentei o pai do menino ao meu coração. Santa Teresinha do Menino Jesus concluiu sua autobiografia afirmando que uma alma abrasada de amor não pode ficar inativa. Bento XVI afirmou que, após a ressurreição, houve a transformação da violência desumana num dom de amor, ou seja, uma cisão nuclear que se dá no íntimo do ser, a vitória do amor sobre o ódio, a vitória do amor sobre a morte.
Padre Márcio Felipe na Celebração da Adoração à Cruz, refletiu à luz do "Tudo está consumado" (Jo 19, 30). Explicou que a indiferença com Jesus, por parte dos reis, é justamente porque Ele, o servo sofredor, não tinha aparência. "Muitos silenciam ao ver a dor do próximo. (...) Com Jesus acontece o contrário. O seu silêncio garante a cada um de nós a certeza de que Ele, fortalecido pelo Pai, entrega sua vida para resgatar a nossa. (...) Tudo está entregue! Não há mais nada a dizer. (...) Permitamo-nos ouvir o silêncio escandaloso do Calvário. (...) Tudo é cruz quando humano padece."
Ajuda-me, Senhor, a ser pão da Ressurreição aspirando às coisas celestes.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)