27 de dezembro de 2024
Opinião

Os perrengues de seu Luisinho

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O sujeito teve vida carregada de obstáculos, reveses e dificuldades de toda ordem. Dramas pessoais, profissionais e financeiros. Embrulhou grande parte desses problemas todos em versos memoráveis, presentes oferecidos à posteridade. Falo mais uma vez de Luís Vaz de Camões, o brabo. Dentre os temas do genial poeta português, aparece o do desarranjo do mundo. O mundo do século 16, no qual viveu o escritor, em que um pequenino reino ibérico chamado Portugal se transformou num vasto império, com território esparramado pela América, África e Ásia. Mas se o mundo passava por mudanças, nas quais as coroas europeias estendiam seus braços e seus interesses colonizadores por todos os cantos, modificando o comércio, a política e os costumes, o melancólico autor português anotava que sua desgraça seguia inalterável: "(...) Mudando andei costume, terra e estado,/ Por ver se se mudava a sorte dura (...)/Mas, segundo o que o Céu me tem mostrado,/Já sei que deste meu buscar ventura/Achado tenho já que não a tenho."

Assim como permanecia inabalável a vocação humana para a torpeza, num planeta em que os sacanas se davam bem e os bons se lascavam: "Os bons vi sempre passar/No mundo graves tormentos/E para mais me espantar/Os maus vi sempre nadar/Em mar de contentamentos/Cuidando alcançar assim/O bem tão mal ordenado/Fui mau, mas fui castigado/Assim que só para mim/Anda o mundo concertado". Retoma o assunto nas oitavas de "Quem há que veja aquele que vivia/De latrocínios, mortes e adultérios,/Que ao juízo das gentes merecia/Perpétua pena, imensos vitupérios,/Se a Fortuna em contrário o leva e guia,/Mostrando, enfim, que tudo são mistérios,/Em alteza de estados triunfante,/Que, por livre que seja, não se espante?". Versos desde sempre atuais.

Na linha da autocomiseração, Camões criou sonetos de fatura impecável: "—Que esperais, esperança? - Desespero./--Quem disso a causa foi? - Uma mudança./-- Vós, vida, como estais? - Sem esperança./Que dizeis, coração?/Que muito quero (...)". Ou ainda: "Oh! Como se me alonga de ano em ano/A peregrinação cansada minha!/Como se encurta e como ao fim caminha/Este meu breve e vão discurso humano!". E no definitivo "Erros meus, má fortuna, amor ardente/Em minha perdição se conjuraram;/Os erros e a fortuna sobejaram,/Que para mim bastava amor somente/Tudo passei; mas tenho tão presente/A grande dor das cousas que passaram,/Que as magoadas iras me ensinaram/A não querer já nunca ser contente./Errei todo o discurso de meus anos;/Dei causa a que a Fortuna castigasse/As minhas mal fundadas esperanças./De amor não vi senão breves enganos (...)". O poeta não se furta a admitir escolhas ruins e malfeitos, assim como segue na trilha do fatalismo. "Que poderei do mundo já querer,/Que naquilo em que pus tamanho amor,/Não vi senão desgosto e desamor,/E morte, enfim, que mais não pode ser?(...) Na vida, desamor somente vi(...)/Parece que para isto só nasci!"

O cara sofreu demais, mas no seu laboratório de poesia, o engenhoso alquimista misturou dores e frustrações e criou poções irresistíveis de beleza. Evoé, Luís Vaz!

Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)