21 de novembro de 2024
Opinião

Ruído que incomoda

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Ainda que pesem as fragilidades, "Ruído Branco" é uma espécie quase rara no cinema americano atual: uma comédia adulta, com algo a dizer e que faz rir sem apelação. Seu diretor é Noah Baumbach, que tem no currículo uma série de filmes interessantes como "A Lula e a Baleia", "Frances Ha" e "História de um Casamento".

Não é um filme fácil. Esconde mais do que aparenta. Joga com ideias, provoca o tempo todo. É baseado em um livro então considerado inadaptável para o cinema, de Don DeLillo. Autor e diretor dividem algo em comum: suas obras investigam um pouco do que se tornou a vida americana, com vícios e loucuras, com o macro visto pelo micro.

O tema de "Ruído Branco" é difícil, ainda mais para uma comédia: o medo da morte. Ambienta-se nos anos 1980, tendo ao centro uma família aparentemente incomum: o pai professor (Adam Driver), especialista em Adolf Hitler, a mãe (Greta Gerwig) viciada em uma medicação desconhecida e os filhos falantes e interessados em ciência, em seus desastres, guiados pelo sensacionalismo da televisão, ao clima da Guerra Fria.

A certa altura, após um acidente envolvendo um caminhão que carregava produto tóxico, a família e toda a vizinhança têm de deixar suas casas. Na estrada, congestionamento, carros que se colidem e, à luz dos trovões, a nuvem tóxica formada pela exposição do produto tóxico. A visão do apocalipse é imposta a essas pessoas comuns, esses americanos típicos cujo divertimento maior, em família, é ir ao supermercado.

O professor Jack (Driver) leciona um curso voltado a Hitler. É respeitado entre seus parceiros de academia, entre eles Murray (Don Cheadle), que sonha em dar um curso somente sobre Elvis Presley. Ao que parece, quer colocar Elvis no mesmo patamar de Hitler em importância histórica. Em cena-chave, ambos os professores "duelam" perante seus alunos, em sala colorida, enquanto jogam informações sobre as personagens estudadas.

Tal cena ajuda-nos a compreender as intenções de um filme sobre o medo da morte e nossa voracidade pelo consumo, pela adoção de mitos criados pela mídia, nossa capacidade de produzir lixo e de nos matarmos lentamente sem que percebamos. Somos os criadores e as vítimas do produto tóxico que escapa ao ar, da nuvem escura que deve nos engolir.

Hitler, como Elvis, é uma ideia, uma projeção, não uma pessoa. É a própria face da morte, o carrasco que conduziu uma nação a seu sacrifício. Lembra da história dos fanáticos que prometiam, em troca da morte de alguns, belas virgens em um paraíso? Nem isso Hitler precisou prometer; ele conseguiu tomar corações e mentes de muitos conterrâneos com um discurso sobre uma nação forte, e até hoje merece ser estudado.

O mesmo homem que leciona Hitler não consegue lidar com a possibilidade de sua morte. Precisa, a exemplo de sua mulher, do medicamento que pode aplacar seu desespero, vendido por um picareta. "Ruído Branco" começa com imagens de acidentes de veículos. Questiona-nos sobre o prazer gerado pela destruição. Chega a Hitler, a Elvis, ao supermercado com seu colorido insuportável, sua mecanização gritante e suas prateleiras de produtos perfilados com perfeição. Chega à cultura pop que tudo esmaga e, na reta final, a uma rara personagem madura e consciente de nossa natureza: uma freira.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)