Desde os 3 anos de idade, eu tinha uma rotina muito regrada e, para mim, sagrada. Eu acordava muito cedo, antes das 6 horas e esperava pacientemente minha avó prender os cachorros no canil para que eu pudesse descer até a casa dela. Eu e meus pais morávamos na casa de cima do terreno onde meus avós vivem até hoje. Então, eu cresci com a presença deles.
Assim que eu a ouvia chamar os cachorros para dentro, eu abria a porta correndo e descia para encontrá-la. "Benção, vó", dizia. E ela sempre respondia: "Deus o abençoe, meu filho", acompanhado de um abraço apertado e um "cheiro" no meu cangote que sempre me fazia gargalhar. Depois desse ritual, íamos até a padaria do outro lado da rua comprar pão, mortadela, um saquinho de leite e, se eu tivesse sorte, algumas balas. O seu Mané, padeiro do bairro, anotava tudo na caderneta azul da minha avó para que, no final do mês, meu avô fosse lá acertar a conta.
Voltávamos para casa e, enquanto meu avô varria a calçada, eu ligava a TV para assistir Vovó Mafalda e a minha vovó, a Antônia, preparava o café da manhã. A minha rotina sagrada de início de dia que fazia a minha vida ter todo o sentido necessário.
Uma vez, essa rotina foi quebrada. Desci sem ter a certeza de que minha avó tinha acordado e recolhido os cachorros e dei de cara com um deles que apenas latiu, o suficiente para me fazer chorar e sair correndo. Por causa do susto, a ida à padaria foi muito feliz. Junto com os pães, a mortadela e o saquinho de leite, minha avó deixou eu escolher qualquer um dos doces dispostos na vitrine. Fiz a escolha óbvia: guardachuvinha de chocolate! Ganhei uns cinco e a generosa quantia de dez balas de leite Kids. "Obrigado vó". Ela só sorriu.
O problema é que minha avó, hoje, não pode mais se lembrar de nenhuma dessas histórias. Ela, com os seus mais de 80 anos, sofre há dez com o mal de Alzheimer. Minha avó tem apenas lapsos de memória, a maioria deles, da sua própria infância. Ela não se lembra dos cachorros que ela prendia no canil toda manhã, não se lembra do seu Mané da padaria e nem do que ia comprar lá. Minha avó, infelizmente, não se lembra nem de mim.
Quando a vejo vou logo dizendo: "Benção, vó!" E ela responde fraquinho... "Deus abençoe, meu filho". Completo dizendo, "me dá um chero", e ela sorri e cheira meu pescoço como sempre fazia. Eu sei que ela não tem consciência, faz por talvez uma memória física, mas pra mim isso basta. Depois disso, ela me olha e tenta fazer alguma conexão. Eu to tão diferente do que eu era quando não passava de um fedelho. "Sou seu neto, vó. O Felipe". Quando muito, ela acha que sou o marido da filha dela, ou seja, meu pai. Eu não contrario... assumo o papel que ela me deu e sigo o jogo.
Na última vez que eu fui visitá-la, resolvi tentar bater um papo com ela. Resolvi estimular a memória da minha avó perguntando situações da sua infância. Ficamos quase uma hora papeando, trafegando por assuntos que dispersavam com a mesma facilidade que surgiam. Como ela não consegue estabelecer muitas conexões, a conversa mudava de rumo muitas vezes.
Então eu falei: "Vó, sabia que semana passada foi meu aniversário?". Ela olhou pra mim e ficou parada me encarando. Deixei o silêncio falar por nós. Uma lágrima escorreu ligeiro dos olhos dela sem aviso prévio. Perguntei o motivo do choro e ela respondeu: "Você é tão bonito! Tá tão crescido".
E ali eu soube que ela se lembrou de mim. Foi só por um instante, eu sei, mas o suficiente para eu saber que o Felipe pode não habitar mais o cortex pré-frontal do cérebro da Dona Antônia. Mas que ele habita ali, no coração daquela velhinha simpática.
Ao me despedir, eu disse que voltaria para tomar um café. Ela sorriu e disse que ia fazer café pra mim. E eu vou voltar, até quando der, para tomar café na casa da minha avó.
Conhecimento é conquista.
Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação pela USP (felipeschadt@gmail.com)