21 de dezembro de 2024

Terra para arar

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Li de Dom Manuel António Santos - Bispo Emérito de São Tomé e Príncipe -, na página "Claustro" dos Carmelitas Descalços de Fátima -  Portugal, o poema "A música dos dias", em quatro partes. Destaco a primeira: "Cada dia é uma aventura/ Um sonho feito de passos/ Desenhados por ruas e avenidas/ Por veredas e praças/ Por sorrisos e abraços/ Por rosas com espinhos/ E orquídeas de alegria.

Cada dia é um poema/ Pintado no sol e no vento/ Nas ondas do mar e nas palmeiras/ Com sabores de coco e sal/ E desenhos de nácar e de coral/ E de areia. / Cada dia é uma tela/ Onde traçamos a vida/ Com as cores do amanhecer/ E as nuvens do poente/ Nos seus tons vermelhos quentes/ Entre o sonho e o medo.

Cada dia é uma página de um livro/ Onde me escrevo/ E descrevo/ E me escrevem/ E descrevem/ E fazemos história/ Cada dia é um presente de Deus."

É a respeito de me escreverem e descreverem, com o propósito de fazer história, que faço esta crônica.

Li, não recordo em que lugar e muito menos quem é o autor,  que, ao oferecermos o nosso ombro a Jesus Cristo, presente na pessoa que sofre, um espinho ou mais, de Sua coroa, fincam em nossa carne ou coração. Tenho pensado tanto nisso: até que ponto estou, de verdade, disposta a oferecer meu ombro aos doloridos.

Dias depois, recebi de meu amigo Padre Jean-Marie Laurier, do Instituto Secular de Notre Dame de Vie, ligado aos Carmelitas Descalços, nascido na França e, atualmente, exercendo seu ministério no México, um ícone de Jesus Crucificado com uma ovelha, que somos todos nós, em volta do pescoço. Contou-me que o viu na Fraternidade de Santa Maria do Encontro, perto de Buenos Aires, onde ficou algumas vezes. Fiquei encantada com a figura. Realmente, o Senhor nos carregou e carrega ainda.

Recordei-me de uma fala, com insistência, do saudoso Dom Joaquim, ao iniciar o Trabalho da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena e, dez anos depois, a Pastoral Carcerária, que tivéssemos ciência de que as ovelhas machucadas, que buscamos ou que vêm ao nosso encontro, ao colocá-las nos ombros, escorrerá em nós seus excrementos, pus, sangue apodrecido que, aos olhos de alguns ou de muitos, causará escândalo. É o tal do preconceito e como escreveu o inesquecível Frei Antônio Moser em seu livro "Enigma da Esfinge": "Só se liberta dos preconceitos quem restitui a voz aos silenciados". Amo essa colocação dele.

Nesse mesmo período, em conversa com a Irmã Madalena de Jesus Crucificado, do Carmelo São José, a respeito de uma situação difícil de uma pessoa com idas e voltas, ela me falou: "Se Deus colocou no nosso caminho é terra para arar". Iluminou-me na hora e ao clarear alguma coisa em mim, sei que é Deus, e sorrio.

Compreendi que minha missão é também de arado, a fim de revolver, sem desistir, a terra com o objetivo de descompactá-la. Quem reduz a terra do coração é o mundo com sua indiferença e obstáculos para oportunidades iguais; é o mal especializado em dissimular para em seguida destruir. Revolver a terra para remover o entulho e investir com coragem na sabedoria do Alto. Quando o solo estiver pronto, observar o romper de sementes do Céu pela graça de Deus.

Disse o próprio Jesus: "Aquele que põe a mão no arado e olha para trás, não é apto para o Reino de Deus" (Lc 9, 62).

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)