23 de novembro de 2024

O trauma brasileiro

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Uma das coisas que eu mais ouço agora, às vésperas de uma Copa do Mundo, é: "Será que vou poder usar minha camisa da Seleção Brasileira sem ser confundido com um bolsonarista?" ou "Será que se seu colocar uma bandeira do Brasil na janela da minha casa vão achar que ali mora um apoiador do Bolsonaro?" Para essas questões eu não tenho resposta. Mas para esse trauma, eu talvez tenha alguma perspectiva para te dar.

É um fato que os símbolos nacionais - e estamos falando de dois símbolos completamente importantes para o brasileiro (a camisa da Seleção e a bandeira) - hoje representam mais do que um time de futebol e um país republicano. Representam o bolsonarismo, goste você ou não.

Inevitável não pensar em outros símbolos que foram ressignificados, como um objeto de tortura egípcia que hoje representa a religião monoteísta mais popular do planeta, estou falando da cruz. Ou como a Cruz Gammadion, um dos símbolos mais antigos do mundo que era atribuído a religiões como o budismo, o hinduísmo e o jainismo. Hoje, você conhece esse símbolo como suástica e sabe muito bem o que ele significa.

Mas o nazismo não se apropriou só da suástica. Outro símbolo foi apropriado pelos seguidores de Hitler, símbolo que era, até pouco tempo atrás, um tabu enorme para qualquer alemão: a bandeira da Alemanha.

Quando eu estudava História na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica), meu trabalho de conclusão foi uma pesquisa sobre como o nazismo utilizou o cinema para disseminar sua propaganda política e ideológica. Nesse processo, conheci uma senhorinha que, durante a Segunda Guerra Mundial, era uma criança. No meio da nossa conversa, ela me disse uma coisa que me deixou muito surpreso.

Em determinado momento eu falei sobre futebol e Copa do Mundo e ela me disse que adorava como os brasileiros se enfeitavam para assistir ao mundial. "A gente aqui [na Alemanha] não gosta de usar nossas cores e nem nossa bandeira", ela disse. Eu questionei o motivo e ela, de maneira bem impaciente com a minha falta de percepção, respondeu: "Ninguém queria ser confundido com um nazista".

Essa questão foi confirmada por uma outra alemã que eu conhecia. Ela, com pouco mais de 45 anos na época que falou comigo sobre esse assunto, disse que a primeira vez na vida dela que ela teve orgulho de sair nas ruas vestindo as cores da bandeira alemã foi na Copa de 2006, sediada na Alemanha. "Durante a Copa, todo alemão foi tomado por um sentimento patriótico que eu nunca tinha visto. Eu me permiti ser patriótica naquela Copa", disse. E veja que ela usou a palavra "patriótica" e não "nacionalista".

Esse trauma alemão é sentido até hoje. Lá, eles são ensinados com exaustão sobre os horrores do nazismo e como o nacionalismo doentio proporcionou espaço para o surgimento do fascismo alemão. Por isso eles têm muita cautela quando o assunto é demonstrar o orgulho pela pátria. Tem um livro chamado "O Trauma Alemão" - veja só você -, da escritora Gitta Sereny, que fala, entre outras coisas, sobre isso: a ferida que os nazistas deixaram no país. Uma ferida que parece nunca cicatrizar.

Antes que você me acuse de estar comparando o bolsonarismo com o nazismo, calma. Eu só quis ilustrar a situação com um exemplo prático e histórico. Os nazistas utilizaram a bandeira alemã como se fosse sua e, por conta disso, todo mundo que empunhasse uma bandeira da Alemanha era taxado de nazista automaticamente. Com a bandeira e a camisa da Seleção brasileira a situação é a mesma. Saia hoje com uma camisa da CBF amarela e seja automaticamente taxado de bolsonarista.

E o Brasil era um país que nunca teve problemas com seus símbolos nacionais. Pelo contrário. Avistar alguém vestido de verde e amarelo em qualquer lugar do mundo era a certeza que ali estava uma pessoa alegre, divertida e cheia de carisma (mesmo que a pessoa em questão não tivesse nenhuma dessas características). Hoje, já não é mais assim.

Mas será que isso vai mudar? Bom... Eu não sei. Talvez a Copa do Mundo possa ajudar a devolver as cores nacionais a todos os brasileiros e brasileiras. Talvez não. A única coisa que temos certeza é que existe um trauma.

Conhecimento é conquista.

Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação pela USP (felipeschadt@gmail.com)