23 de novembro de 2024

A política sempre se infiltra

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A loira mais famosa do mundo vive um inferno. Marilyn Monroe desfila para as câmeras e é obrigada a sorrir. Em muitos casos, parece gostar da recepção, dos gritos, da impressão de ser a mulher mais desejada do universo. Nos bastidores, ou em sua vida pessoal, sofre na mão de homens diferentes, antes nas mãos de uma mãe desequilibrada, e por não ter um pai.

A certa altura de "Blonde", após passar por diferentes relacionamentos, entre eles com o ex-jogador de beisebol Joe DiMaggio e o escritor Arthur Miller, ela torna-se amante do presidente John F. Kennedy. O que parecia ser uma vida de completa loucura, uma montanha-russa de emoções e labirintos, casa-se à política à perfeição.

Isso se deve, acredito, ao momento que os americanos viviam, a Guerra Fria. No encalço, o medo, a paranóia, a perseguição que se apresentam na mulher-menina, na bela loira de corpanzil invejável, que desejava ter um pai ao lado, que desejava ser mãe, que a certa altura desse problemático filme de Andrew Dominik ouve um bebê chorar dentro de uma gaveta.

A política sempre encontra um jeito de se infiltrar. Quem não faz política - ou acredita não fazer - termina dominado por quem faz. O presidente Kennedy é servido por Marilyn com sexo, e só. É o recorte dado pelo filme e o que Dominik transpõe à tela com extremo mau gosto. Inegável, contudo, a representação que esse encontro assume: o símbolo sexual de uma época é amante do homem mais poderoso da mesma, que recebe sexo oral enquanto assiste a lançamentos de mísseis e filmes de ficção científica na televisão, em um quarto de hotel.

Em sua busca por um pai, talvez Marilyn tenha visto em Kennedy - "o pai da nação", a protegê-la contra invasores soviéticos ou marcianos - alguém a lhe dar guarda. Como todas as investidas da atriz por relações, outra frustração consome-se nesse breve romance, nesse encontro para sexo casual - um entre muitos que o presidente parece ter mantido.

Antes de chegar ao presidente, Marilyn submete-se aos agentes da CIA. É vigiada, transportada, como se fosse um espião prestes a roubar códigos secretos escondidos nas calças de Kennedy. A visão de Dominik sobre essa mulher atormentada e um país mergulhado em medo não produz em nós nunca o embrulho no estômago que deveria produzir. "Blonde", a partir do livro de Joyce Carol Oates, disponível na Netflix, fracassa ao tentar nos mostrar o mundo de desprazeres, abusos e abandono de Marilyn Monroe.

Parte desse fracasso deve-se ao visual. O filme é uma bagunça entre cores e preto e branco, com alterações constantes no aspecto de tela, com reproduções sem função clara de fotos antigas de Marilyn, e é difícil compreender como tudo isso se une à alma atormentada, impalpável, da personagem central. O esforço de Ana de Armas também não evita o pior.

O melhor relato sobre a estrela ainda é o de Norman Mailer em seu longo ensaio "Marilyn", publicado no Brasil, há alguns anos, pela editora Record. Talvez por enxergar nessa bela mulher, Norma Jeane, uma pessoa extraordinária de características comuns, e por manter sempre um distanciamento seguro, por encará-la como mito, por nunca querer entender por completo o fenômeno que produziu na cultura de massa.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com