21 de novembro de 2024

A arte de contar histórias

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Em milênios anteriores, o homem recorria às histórias quando precisava explicar algum evento da natureza, como uma doença ou um terremoto. Ou seja, criava lendas e deuses. Mais tarde, com a evolução da ciência, ficou claro o lugar das histórias e da criação de mitos para nossa evolução e distanciamento de outras espécies animais.

A ciência fez um bem enorme. Distanciou-nos um pouco mais da imaginação como propulsora de nosso lado místico, mas não da nossa necessidade pela ficção. Não são poucos, por isso, os que se enxergarão na pele da heroína de “Era Uma Vez um Gênio”, o novo filme de George Miller, o pai da série de filmes de ação “Mad Max”.

Ela é Alithea, interpretada por Tilda Swinton, mulher solitária e um pouco sonhadora. Sua especialidade é a narratologia. Em viagem à Turquia, ela compra um pequeno frasco de vidro em uma das dezenas de lojas de lembrancinhas de Istambul. Do frasco sai um gênio, espécie de deus formado da fumaça, gigante que depois assume tamanho normal.

Logo para ela, alguém que mergulhou no estudo das antigas narrativas, dos mitos e a quem a ciência faz todo o sentido para a compreensão da História, algo assim - tão mágico, tão impossível - teve de se impor. O filme de Miller, por trás de sua carapaça imaginativa, de todas as impossibilidades, mostra-nos como, a despeito do ceticismo, ainda dependemos da imaginação para continuarmos vivos - mais que da ciência.

Alithea reluta a fazer os três pedidos concedidos pelo gênio vivido por Idris Elba. Na ausência dos pedidos vem a história dele, seus amores fracassados, seus aprisionamentos em frascos que terminaram no fundo do mar, na barriga de um peixe, ou abaixo do piso sobre o qual pisaram reis e suas amantes. O gênio sobreviveu aos milênios para encontrar Alithea, para encontrar nosso tempo de ciência e, de certa forma, para impor seu sentido: o gênio descobre que, mesmo com a presença de tanta tecnologia, ainda sonhamos.

A protagonista explica para o antes aprisionado essa peculiar encruzilhada na qual nos metemos, sobretudo nos últimos 200 anos: “apesar de toda essa parafernália, permanecemos desnorteados. Quando não conseguimos conter o caos, nos enchemos de pavor e pânico, e nos viramos uns contra os outros”. Ao que o gênio responde: “vocês ficam tateando no escuro e mesmo assim conduzem a sua inteligência a grandes feitos”.

Sim, tateamos no escuro. Nem sempre traduzimos os avanços da ciência em felicidade ou, no mínimo, em bem-estar social (a ciência evoluiu com o conflito, com as guerras, como nos mostra “2001: Uma Odisseia no Espaço”). E não raro somos capazes de separar as lendas da realidade. “Cedo ou tarde, nossas histórias são substituídas pelas narrativas da ciência. E deuses e monstros são reduzidos a metáforas”, diz Alithea em sua palestra.

Entender as narrativas do passado é fundamental para descobrirmos como chegamos até aqui. Para a compreensão do que nos separa dos outros animais e do peso do que costumamos chamar de cultura. Com toda sua sabedoria científica, Alithea não desistiu de se apaixonar - mesmo que pelo gênio que, no fundo, sabemos bem, não existe. E se existe apenas para essa mulher sozinha e, à primeira vista, desinteressante, que assim seja.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com