De tão conhecido, o título "A Escolha de Sofia" - livro de William Styron, filme de Alan J. Pakula - tornou-se uma expressão: quando não conseguimos escolher entre uma coisa e outra, chamamos o entrave de "escolha de Sofia". Explico a origem: no livro e no filme, Sophie é enviada a um campo de concentração nazista e precisa escolher quem quer salvar de seu casal de filhos. Não pode ficar com os dois. Escolher um significa condenar o outro à morte.
O drama é forte e rendeu a Meryl Streep um merecido Oscar de atriz, após vencer como coadjuvante, três anos antes, por "Kramer vs. Kramer" (no qual vive uma mãe que abandona o filho e depois pede sua guarda). "A Escolha de Sofia", levado ao cinema em 1982, mostra-nos primeiro a "segunda vida" de Sophie, quando, nos Estados Unidos, divide seu tempo entre uma relação conturbada com o explosivo Nathan (Kevin Kline) e confidências com o amigo Stingo (Peter MacNicol), entre a dependência e a racionalidade. A partir de seus relatos e lembranças, vem à tona sua tragédia nos campos de concentração.
Lançado no catálogo da Netflix no fim de 2021, "A Filha Perdida" oferece-nos um retrato um pouco diferente da maternidade. Como na adaptação de Pakula, temos aqui uma narrativa cindida em dois tempos, dois momentos da vida de uma mulher.
Na Grécia à beira-mar chega a professora Leda (Olivia Colman) atrás de descanso e tranquilidade. Seu retiro logo sofre um abalo: surge no local uma família agitada, feita de pessoas vulgares. Falam alto, fazem festa, causam bagunça e, descobrimos mais tarde, têm relações com a máfia. Algumas soam perigosas. Uma das mulheres, Nina (Dakota Johnson), chama a atenção de Leda. A bela moça carrega nos braços a filha pequena, bate-boca com o marido bonitão e, a certa altura, perde a criança, que é encontrada por Leda.
Essas mulheres - tão diferentes, às vezes tão incorretas - aproximam-se. O que parece excluí-las é justamente o que as atrai. Nina desperta lembranças em Leda: o passado da protagonista inclui a vida com duas filhas pequenas, a dificuldade de dividir o tempo do trabalho com o de ser mãe e, depois, as escapadas com um amante.
Esse retrato da maternidade questiona-nos o filme todo: não é essa a mãe que aprendemos a ter como modelo. Não é a mãe protetora, aquela que - como Sofia - não pode simplesmente fazer uma escolha envolvendo os filhos e que por nada no mundo se separaria do marido e da prole para viver um novo amor, o que mais parece uma aventura.
Leda tem plena consciência do que fez e das consequências de suas escolhas. Na pele de Colman, é uma mulher adulta e ainda atormentada pelos dias em que, mais jovem (na pele de Jessie Buckley), deixou as filhas após conhecer um professor intelectual. Quando ele fala para todos, em uma palestra, é como se falasse para ela. Como uma adolescente, ela deixa-se levar por essa nova relação e logo se vê envolvida. E logo rompe com o marido.
Em uma das melhores cenas de "A Filha Perdida", Nina pergunta a Leda como foi ficar três anos longe das filhas por causa do novo relacionamento. "Foi maravilhoso", responde Colman, às lágrimas, misto de alívio e dor. Sua interpretação é um dos pontos altos desse filme baseado no livro de Elena Ferrante, com direção de Maggie Gyllenhaal.
Durante seu retiro, Leda esconde a boneca da filha de Nina. A criança sofre com a falta do brinquedo. Não adianta comprar um idêntico; crianças apegam-se a determinados objetos, tratados como únicos, como filhos. Leda talvez busque o aflorar de seu instinto materno, mas o que encontra, dentro da boneca, é uma minhoca de praia e um pouco de sujeira. Seu pior lado - e o que legou a essa "filha perdida" - continua a persegui-la.
Poucos filmes abordam a maternidade indesejada. "O Bebê de Rosemary" é um deles, ainda que a personagem de Mia Farrow - graças ao sadismo de Roman Polanski - continue, ao fim, a balançar o berço. Outro exemplo pouco lembrado é o interessante "O Olmo e a Gaivota", de Petra Costa e Lea Glob. Mais do que condenar mulheres, esses filmes apresentam complexidades que acompanham a concepção e rejeitam respostas fáceis.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com