CULTURA

Mapeamento genético indica que Beethoven não era um Beethoven

Tudo indica que houve uma traição na família, uma ou mais gerações antes do nascimento dele

Por Reinaldo José Lopes | 22/03/2023 | Tempo de leitura: 4 min
da Folhapress

Reprodução

Em algum momento, outro homem, sem esse sobrenome, gerou filhos do sexo masculino dentro da família, e é dele que Ludwig van Beethoven descende
Em algum momento, outro homem, sem esse sobrenome, gerou filhos do sexo masculino dentro da família, e é dele que Ludwig van Beethoven descende

A partir de mechas de cabelo preservadas desde o começo do século 19, pesquisadores alemães conseguiram "ler" o DNA do compositor Ludwig van Beethoven (1770-1827). O resultado é quase tão impactante quanto as primeiras notas da famosa Quinta Sinfonia do músico: tudo indica que houve uma traição na família Beethoven, uma ou mais gerações antes do nascimento dele.

Isso porque o cromossomo Y (a marca genética da masculinidade, presente na maioria dos homens) no DNA das mechas de cabelo não bate com o dos homens vivos hoje que têm o mesmo sobrenome e descendem do suposto ancestral de Beethoven. Isso significa que, em algum momento, outro homem, sem esse sobrenome, gerou filhos do sexo masculino dentro da família, e é dele que o músico descende.

Tais achados surpreendentes estão descritos em artigo na revista especializada Current Biology. A equipe responsável pelo estudo, liderada por Johannes Krause, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionista, também vasculhou o genoma do compositor em busca de pistas sobre seus problemas de saúde ?ao longo da vida, Beethoven perdeu a audição e teve distúrbios gastrointestinais e no fígado.

As dificuldades digestivas e a surdez continuam sendo um relativo mistério mesmo com o genoma completo, mas Krause e seus colegas flagraram a presença de uma variante de DNA que tornava Beethoven vulnerável a doenças no fígado. De quebra, detectaram a presença de material genético do vírus da hepatite B em seu organismo nos meses anteriores à morte. Essa combinação de fatores pode ter apressado o fim do gênio.

Krause contou à reportagem que a ideia por trás do projeto foi formulada em 2014, quando ele foi contatado pela primeira vez por Tristan Begg, na época um estudante de mestrado que tinha trabalhado durante algum tempo no Centro Beethoven, na Califórnia, junto com o especialista William Meredith.

"Will é especialista na obra de Beethoven, e Tristan acabou se tornando um também durante seu doutorado", diz Krause. O pesquisador alemão se considera um apreciador de música clássica ?sua mulher é musicista e ele costuma ir a concertos. "Gosto de Beethoven, mas prefiro Dvorak [compositor tcheco] ou Tchaikovski [russo]. Acho que sou mais do Leste [europeu]", brinca.

O trabalho de detetive antes que o genoma do músico fosse "soletrado" também envolveu uma série de surpresas curiosas. Como já era famoso em vida, Beethoven cedeu mechas de seu cabelo a diversos admiradores ao longo do tempo. A equipe do estudo teve acesso a oito dessas mechas, as quais, em geral, têm histórias de transmissão diferentes - foram dadas a fãs do compositor que não se conheciam, em momentos diferentes da vida de Beethoven, ou logo após sua morte.

Uma das mechas não tinha DNA suficiente para que as análises fossem feitas. Outra, segundo o sequenciamento do genoma, vinha de uma mulher. As demais eram de homens de origem europeia, mas cinco pertenciam à mesma pessoa, enquanto a outra era de outro indivíduo.

Como as cinco mechas cujo genoma "batia" tinham danificações em seu DNA que eram o esperado para uma amostra do século 19, e considerando que, em geral, elas tinham histórias independentes e bem documentadas, a equipe concluiu que o material era autêntico. "É extremamente improvável que as amostras não venham de Beethoven. Isso exigiria uma falsificação extremamente complexa", resume Krause. Uma das mechas foi, então, escolhida para uma análise em detalhes do DNA do músico alemão.

Com base em registros genealógicos, a equipe buscou homens vivos hoje que fossem possíveis parentes dele. Chegaram até a um conjunto de descendentes de Aert van Beethoven (1535-1609), que, segundo as mesmas genealogias, também seria ancestral do compositor. Foi então que veio a surpresa: embora os cromossomos Y desses descendentes de Aert sejam praticamente iguais entre si, eles não correspondem ao cromossomo Y do genoma das mechas.

O mais provável, portanto, é que, entre Aert e o pai de Beethoven, aconteceu alguma concepção em que o pai biológico não era membro da família. "Ainda não achamos ninguém com o cromossomo Y idêntico ao dele, mas talvez isso aconteça no futuro", diz Krause.

Quanto às doenças que atormentavam o gênio, a pista mais forte é a de uma variante do gene PNPLA3, um fator de risco genético considerado alto para o aparecimento da cirrose hepática. Beethoven era homozigoto para esse variante - ou seja, carregava duas cópias dessa forma do gene, uma oriunda do pai e outra da mãe, aumentando ainda mais o risco.

Os efeitos deletérios da variante de DNA só são potencializados com alto consumo de álcool. Ao que tudo indica, era o que estava acontecendo, já que algumas fontes diziam que ele chegava a beber cerca de um litro de vinho durante o almoço no final da vida.

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