Opinião

Colecionar perdas

09/03/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Existir é colecionar perdas. Concepção um tanto melancólica dessa dádiva, o dom gratuito da vida? Não. Mero exercício de reflexão, para que reavaliemos nossa trajetória por este sofrido planeta.

A primeira experiência que me marcou quanto a isso, foi o presente que recebi de Irmã Úrsula, minha professora do segundo ano primário da Escola Paroquial "Francisco Telles". Talvez impressionada com a minha devoção, aos oito anos, presenteou-me com um crucifixo. Fiquei feliz. Voltando das aulas, o mostrei aos meus pais.

Poucos dias depois, a diretora do colégio, Irmã Flórida, aparece em casa. Conta que aquele crucifixo estava nas mãos agônicas do pai da Irmã Úrsula, quando ele morreu. Pediu-o de volta, e me trocaria com outro que não revestisse o mesmo valor sentimental.

Concordei. Mas onde estava o crucifixo? Reviramos todos os lugares imagináveis e não imagináveis. Até os forros e telhados foram examinados. Nunca mais o encontramos.

Era um objeto tangível, impregnado de algo intangível. Nenhum outro estava nas mãos do moribundo. Qual o seu paradeiro? Perder coisas é um fenômeno que me acompanha até hoje. Fui aprendendo, mas não me acostumando.

Tião, que me ajudava na pequena propriedade rural que adquiri apenas com o intuito de reafirmar minha vocação ambientalista, tinha uma frase pronta para avisar a morte de algum animal, - (pois também sou reincidente na tentativa de fazer criação ecológica) - : "Só perde quem tem...".

Nada se compara àquilo que já tivemos e também perdemos, numa escala distinta, esta sim, fundamental. Perdi avós e tios. Meu padrinho de crisma, que partiu aos 28 anos, levado pela tuberculose. Mas só vim a sentir verdadeiramente a morte quando morreu meu irmão, João René, em 1989. Essa inversão odiosa da ordem - fazer pais enterrarem seus filhos - fez com que meu pai também nos deixasse precocemente, em 1992. Não conseguiu sublimar a morte do caçula, aquele que mais o entendeu e com quem mais convivia.

Já minha mãe, a lamentar continuamente o mesmo abalo, foi obtendo a cicatrização, lenitivo que advém com o tempo. Assim, permaneceu conosco até 2005.

Quantas outras defecções me feriram brutalmente antes e depois! Amigos fraternos, padrinhos de casamento, professores, influenciadores de minha trajetória, a primeira namorada, que me ensinou o que era paixão. Amores fraternos, que passaram a fazer parte de meu patrimônio afetivo. Os que me ajudaram, os que acreditaram em mim, os que me ensinaram a enfrentar procelas. Verdadeira multidão. Eles se integraram de tal forma no meu ser que - para mim - continuam vivos. Invoco a frase de Maria de Lourdes Teixeira, que sempre dizia: "Os mortos só morrem de verdade quando nos esquecemos deles!".

Tenho hoje a sensação de possuir maior patrimônio amorável na legião dos que já se foram, do que o detecto nos que ficaram. A Providência, muito sábia, faz com que cada neto, ao nascer, traga consigo a capacidade de ser amado, como se tivera sempre existido. É uma real compensação.

Para trabalhar com o acúmulo de perdas - e de dores - escrevi "Pronto Para Partir?", livrinho que hoje se encontra nos sebos, a três reais. Continuo, porém, a considerar a morte um mistério! Por mais próxima esteja, é sempre a morte do outro. Uma experiência personalíssima, pela qual passaremos apenas uma vez.

José Renato Nalini é diretor-geral de universidade, docente de pós-graduação e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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