Mesmo que usada de forma excessiva nos últimos tempos, o que costuma desgastar o sentido, a palavra ‘evento’ ainda emociona quando lembrada na sua origem latina, uma composição de ’ex’, que significa ‘fora’, e ‘venire’, gênese de vir. A ideia por trás dela é a de algo que poderia ser traduzido como ‘aquilo que vem para fora, se manifesta, acontece’. ‘Vivência’, também oriunda do latim ‘viventia’, particípio presente de ‘vivere’, chega aos nossos dias mantendo o significado primordial de tudo que está ligado ao ato de viver. Ganhou notoriedade no século XX, especialmente no campo da filosofia e da psicologia, para descrever a experiência consciente imediata.
Embora os dois termos que fundam este comentário sejam com frequência usados de forma intercambiável, há diferença entre eles. Ela reside no grau do impacto emocional proporcionado aos participantes enquanto observadores, porque se todo evento tem potencial para ser vivência, nem sempre ele consegue alcançar este patamar. Para que alce o status de memorável, tocando as fímbrias dos sentimentos e permanecendo indestrutível no espírito, é necessário que esteja pleno de elementos que estimulem os afetos e mobilizem as emoções. Pois foi isso que conseguiu Luiz Cruz de Oliveira, cujo nome dispensa comentários, com o evento/vivência ‘O canto de nossa terra’, apresentado no último dia 26 no SESC, grandioso espaço cultural que a cidade recebeu como o maior dos presentes em 2024.
Nascido do desejo de compartilhar um sonho e homenagear a cidade que chega neste 28 ao seu 201º aniversário, o sarau que aconteceu na quarta-feira no começo da noite, honrando a etimologia que situa também no tempo este encontro festivo, trouxe à cena poetas, prosadores e músicos de Franca. Como curador, Luiz Cruz obteve alto nível de conexão ao reunir vozes que tocaram em profundidade a alma francana pois nelas o público percebeu subjacentes os autores e suas subjetividades, a cidade e sua história, a cultura e alguns de seus substratos; também os lugares-espaços que levaram a memória afetiva ao passado e a reconduziram ao presente pela via do eterno traduzido na voz lírica de poetas e prosadores.
Abrindo o programa, ali estava Cruz a declarar seu amor à Amada, em texto de expressiva plasticidade que de imediato levou o público a reconhecer Franca já nas primeiras imagens. Na sequência, ‘Terra dos Meus Sonhos’, do saudoso Agnelo Morato, que muitos consideram o autor de um dos hinos da Franca, despertava emoções profundas já nos primeiros acordes do violão de Adilson Franzin, da viola de Anderson Garcia, do timbre singular de Toninho Soncini. Outras valsas viriam, como ‘Bairros da Minha Terra’ e ‘Seresteiros de Franca’, resgates ao apreço dos francanos de várias gerações pelo gênero escolhido para as serestas, outra marca musical da cidade em décadas não muito distantes. Entre umas e outras canções, a sensual interpretação de Lucineia de Paula para o poema ‘A Pinta Preta”, de Ygino Rodrigues, e a recitação de Giovana de Freitas que trouxe à baila um de nossos maiores poetas, o também saudoso Josepha Guimarães, em ‘Companheiros’.
Então fez-se o momento em que o silêncio se tornou poderoso para que Camila Bastianini declamasse de forma cristalina ‘Berço’, texto de alta densidade lírica, aura telúrica e fortes traços de afeição filial, autoria de Regina Bastianini. Como uma suíte para o recorte literário, a mesma Camila emprestou sua linda voz a “Encontros e Despedidas”, de Milton Nascimento. A ela, que costurou com essencial linha invisível a unidade da precisa apresentação dos artistas, sucedeu mais uma vez Luiz Cruz de Oliveira, tendo a seu lado Sandra de Assumpção, filha de Carlos de Assumpção, 98 anos, impossibilitado de comparecer por conta de repentina indisposição. Cruz homenageou o amigo, um dos maiores poetas contemporâneos do Brasil, com alguns versos de ‘Protesto’.
Quando se achava que o veio das emoções estancaria, irrompeu pela rampa lateral, e desde o primeiro andar, os dançarinos e cantores do coletivo “Rosas da Mata”. Em explosão de sons e cores vibrantes, contagiaram de imediato os presentes com seu maracatu, a manifestação que mescla música, dança, religiosidade. Como em apoteose, o grupo mostrou um pouco das poderosas práticas simbólicas que africanos escravizados protagonizaram desde o início da colonização do nosso país, integrando elementos das culturas africana, portuguesa e indígena.
Retomo o conceito de evento para frisar que ele é como uma teia que não se aguenta se um fio estiver frouxo. Tudo precisa estar conectado de forma perfeita, porque o que sustenta a estrutura não é apenas o nome que a define, mas sobretudo a vivência que proporciona, enquanto centro de gravidade que faz as pessoas quererem estar, permanecer e voltar. Sem fragmentação, o canto foi realmente de todos. Conversando com uns e outros, umas e outras, na fila que se formou no final para cumprimentar os artistas, senti que a emoção que me tomava era uníssona. Falávamos de Franca. Cantávamos Franca. Ficavam evidenciadas suas qualidades, seus artistas inspirados e inspiradores, o poder da arte em mobilizar espíritos e corações. A esse forte sentimento juntavam-se outros, não menos relevantes: o entusiasmo pelo aniversário da cidade e a gratidão pela hora de encantamento onde os espíritos se irmanaram pela via da beleza que é sempre a que mais resiste.
Saímos da área de convivência, que nos havia reunido durante aqueles gloriosos 60 minutos, um pouco diferentes dos que lá tinham entrado, pois tocados por ruidosa alegria. A frase ‘muito obrigado!’ parecia estampada na face de todos, traduzindo o prazer usufruído diante de duas das manifestações mais puras do espírito humano: a literatura e a música.
Não tínhamos apenas assistido a um evento; nós o tínhamos vivenciado.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras