Você já se perguntou quantas palavras tem nosso idioma? De acordo com o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras, até 2024 o número girava em torno de 400 mil. Como toda língua está em constante evolução, é apenas uma estimativa e, transcorrido mais de ano da pesquisa, é provável que tenha se ampliado por conta de neologismos e acréscimos oriundos do surgimento de novas tecnologias e do processo de globalização.
Pode parecer que nosso léxico é extenso; mas é menor que o dos turcos, ingleses, coreanos, japoneses, suecos, alemães. Cabe esclarecer que embora se possa contar o número de entradas de verbetes em um dicionário, é quase impossível determinar quantos fazem parte do idioma. Isso se explica pelo fato de que ao compilar um dicionário o lexicógrafo decide se a frequência de uso é suficiente para justificar a inclusão. É uma escolha autoritária, pois podem existir palavras na língua corrente sendo ignoradas.
A respeito disso já falava Aurélio Buarque de Holanda, linguista, professor, tradutor, escritor, acadêmico que em 1975 publicou o ‘Novo Dicionário da Língua Portuguesa’, tornado popularmente conhecido como Dicionário Aurélio. Com o tempo ‘Aurélio’ passou a ser ‘aurélio’, substantivo comum, num belo e genuíno reconhecimento do povo à pesquisa que havia demandado esforço e tempo ao autor. Da primeira edição até hoje, foram vendidas mais de 15 milhões de cópias em 40 edições e diferentes versões como livro de bolso, disquete, CD-Rom. Considerado um dos maiores sucessos editoriais da história do país, perdeu espaço com o advento da internet; mas seu prestígio continua inabalável também no digital.
Foi por ocasião do lançamento desse dicionário que o autor, presente num programa da extinta TVE, respondeu de forma bem assertiva à pergunta do jornalista Arakén Távora, que já havia entrevistado Ariano Suassuna, Ruth Rocha, outros notáveis e até Clarice Lispector em rara aparição televisiva. À indagação ‘Qual a palavra mais bonita da Língua Portuguesa?”, ele de pronto falou: ‘libélula, murucututu, alvorada.’ Não só disse como explicou a preferência.
‘Libélula é um voo, uma coisa alada, de poesia imensa. Parece uma coisa que está em um voo incerto, um voo trêmulo, e em grande parte representa a realidade daquilo. Libélula é palavra de meu profundo encantamento, pertence ao domínio da zoologia. Murucututu, também do mesmo reino, tem cinco sílabas seguidas, todas terminando em ‘u’, e isso me parece coisa maravilhosa. Alvorada parece uma clarinada.’ Poderíamos acrescentar que murucututu, de origem tupi, é nome de coruja e integra canção que índios cantam para fazer criança dormir; um tipo de bicho-papão ibérico. E alvorada, tendo mais de uma acepção, tanto pode significar o romper do Sol como o canto das aves ao amanhecer e o toque militar nos quarteis; em sentido figurado, alça metáforas que remetem a princípio, início, começo.
Talvez libélula, murucututu e alvorada não entrem em lista de sua preferência, leitora ou leitor que tenham chegado a essas linhas. Compreende-se. A percepção da beleza de uma palavra é subjetiva e, no caso do dicionarista, a sensação agradável tinha a ver com sonoridade. Outros falantes do português podem eleger como belos alguns vocábulos que lhes falem mais ao coração que aos ouvidos. É o caso de ‘saudade’, com frequência empregada por poetas e prosadores pela sua semântica que não tem paralelo em outras línguas. Seu significado torna-se único pela singular gama de sentidos e pela forte carga cultural e emocional que carrega. Embora o castelhano tenha termo parecido, ‘soledad’, e o catalão ofereça ‘soledat’, tais vocábulos se referem mais a sentimentos de solidão e nostalgia, enquanto ‘saudade’ abrange desde a dor da ausência até um certo prazer melancólico em sentir falta. É óbvio que, sendo a emoção universal, outras línguas a traduzem, mas sem capturar as nuanças da nossa.
O substantivo português ganhou novas camadas de sentido a partir do final do século XV, período das grandes navegações, quando navegantes se despediam de suas famílias para se lançarem ao mar, não sabendo se voltariam, tornando a experiência da ausência e do desejo por algo ou alguém distante, traço acentuado na cultura lusófona. Fernando Pessoa cunhou versos magníficos para traduzir este sentimento: ‘Ó mar salgado, quanto do teu sal /São lágrimas de Portugal/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram/ Quantos filhos em vão rezaram!/ Quantas noivas ficaram por casar/ Para que fosses nosso, ó mar!”
Junto a ‘saudade’, muito citada entre as belas do nosso léxico, aparecem outras em ranking que costuma ser lembrado. São elas: gratidão, fé, liberdade, perdão, amor, paz, respeito, amizade- todas ligadas a uma sinonímia que as vincula à subjetividade. Também entra nesse grupo ‘consideração’, que aprendi com o saudoso professor de filologia João Penha conter em si a ideia de ‘astros’ desde que no latim este vocábulo era ‘sidera’, pedacinho que permanece em con-sidera-ção. Movimentar-se junto com as estrelas era a ideia inicial, depois ampliada para ‘movimentar-se com os outros’, no sentido de acolhimento e respeito. Graças às maravilhas da internet pude expandir meu conhecimento através de vídeo da professora Marilena Chauí, que numa aula sobre a palavra mostrou que dentro dela pulsa outro conceito, o de desejo. Onde está o ‘desejo’ em ‘consideração’? A ver.
Na Idade Média e também na Renascença, ensinou a filósofa, ‘sidera’ tinha a ver com astrologia e transcendência. Olhando a Via Lactea no profundo das noites, com fervor os homens pediam aos astros para ‘considerar’ seus pedidos em questões que os inquietavam. Quando acreditavam em respostas que a ilusão lhes afiançava, sentiam-se acolhidos, considerados. Quando tal não acontecia, e os astros permaneciam mudos diante dos pedidos, os homens sentiam que estavam arredados e usavam então a partícula ‘de’ (com implícita ideia de afastamento) junto a sidera pra indicar ‘separação’. Pois é desse ‘de-sidera’, antônimo de ‘com- sidera’, que advém ‘desiderato’ e ‘desejo’, que traduzem sentimentos surgidos diante da ausência ou da falta. Outra interpretação, essa mais lírica, sugere que o desejo é força que nos move em direção a algo distante e talvez inacessível, mas que brilha e nos orienta como as estrelas. Como se pode deduzir, ‘consideração’ desvela deslumbrante poeticidade.
Palavras conseguem dizer muito mais do que aparentam à primeira vista ou audição. Elas podem nos ensinar coisas extraordinárias se nos dispusermos a mergulhar no seu reino.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.