05 de dezembro de 2025
REFLEXÃO

Estoicismo hoje

Por Sonia Machiavelli | especial para o Portal GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 5 min

‘O maior obstáculo à vida é a expectativa, que deixa o indivíduo na dependência do amanhã e o faz perder o momento presente.’ Sêneca, in ‘Lições sobre a brevidade da vida’.

‘Tudo o que ouvimos é uma opinião, não um fato. Tudo o que vemos é uma perspectiva, não a verdade’. Marco Aurélio in ‘Meditações’.

‘O que perturba os homens não são as coisas, mas as opiniões categóricas que eles têm sobre as coisas’. Epíteto, in ‘Manual’.

‘O pensamento deve ser mais forte do que a matéria. E a vontade mais poderosa que o sofrimento físico e moral’. Zenão de Cítio, criador do Estoicismo, corrente de pensamento que influenciou os nomes anteriormente citados.

Todas as frases acima são encontradas nas redes sociais de muita gente e representam pensamentos do mundo antigo que vêm ganhando adesão em nossos dias. Por conta talvez da aceleração do tempo há uma tendência em alguns segmentos de retornar a coisas mais seguras, tranquilas, consistentes. São ideias que se alinham a uma corrente da filosofia conhecida por ‘estoicismo’, palavra que deriva de ‘stoa poikile’, frase grega que traduzida teria como equivalente em português ‘alpendre pintado’. Este era o nome de um mercado público em Atenas onde pensadores se encontravam para discutir ideias entre si ou com qualquer cidadão interessado.

Por algum tempo os que se reuniam em torno de Zenão eram chamados ‘zenonianos’, mas depois fixou-se a forma ‘estoicos’- de ‘stoa’, referência  óbvia ao espaço.  É curioso que Zenão, até os quarenta anos, não se interessava por outra coisa que não fossem seus negócios que consistiam em transporte de mercadorias pelo mar Egeu. Tudo seguia tranquilo até que uma tempestade destruiu o navio que carregava todos os seus bens. Aos quarenta anos ficou só com a roupa do corpo e, em crise, consultou um oráculo que o aconselhou a esquecer as águas do mar e buscar as águas do conhecimento.  Zenão diria depois a seus futuros alunos que a partir do episódio tinha aprendido a valorizar a sabedoria mais do que a riqueza ou a reputação: 'Minha jornada mais lucrativa teve início no dia em que naufraguei e perdi toda a minha fortuna.’

Ele começou por Sócrates e acabou fundando uma escola cuja influência se manteve por séculos e está sendo revisitada neste nosso tempo de tantas crises- climáticas, políticas, econômicas, sociais e outras. Os valores estoicos voltaram a ser pensados e se tornaram de novo essenciais. Uma das provas de que retornaram com força é a oferta de livros sobre o tema. Dezenas de títulos   buscam responder à demanda crescente por obras que resgatam filósofos antigos ou intérpretes modernos que atualizam ideias ancestrais mas perenes. Um lançamento recente é “O jeito estoico de viver’, publicado no Brasil pela VR Editora. Seu autor, William Mulligan, é criador no YouTube do ‘The Everyday Stoic’, que já conquistou 840 mil seguidores. Seu livro anterior, ‘O ego é seu inimigo: como dominar seu maior adversário,’ vendeu no Brasil 190 mil exemplares.

É fato que o estoicismo, replicando o que acontece nos EUA, vem ganhando cada vez mais adeptos entre os brasileiros. Durante a última edição da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, vitrine para lançamentos, o assunto esteve na pauta de grandes editoras. A Intrínseca colocou na vitrine “Faça o certo, faça agora: a justiça em um mundo injusto’, de Ryan Holiday, ex- publicitário que vendeu mais de 10 milhões de exemplares no mundo. Ele defende as quatro virtudes estoicas- coragem, temperança, sabedoria e justiça, esta que, como diz, ‘não estava exatamente relacionada a deliberações da corte na Antiguidade, mas a um compromisso em ‘fazer o certo’. A escolha de assuntos como este, segundo a editora executiva Rebeca Bolite, explica-se por uma necessidade do público de ‘não só comprar um livro grego traduzido, mas um que torne, com histórias e exemplos, essas virtudes mais compreensíveis e acessíveis’.

Entretanto, é grande também o número dos leitores que, em busca de uma análise mais profunda da vida, vêm escolhendo clássicos como ‘A arte de viver’, de Epíteto (Editora Sextante); ‘Lições sobre a vida feliz’, de Sêneca (Selo Goya); ‘Meditações’, de Marco Aurélio (Melhoramentos). A propósito, as vidas desses três filósofos são, por si mesmas, tão extraordinárias quanto admiráveis. Epíteto (55 dC) nasceu na Frígia, hoje Turquia, foi escravizado ainda criança, passou grande parte de sua vida em Roma na casa de um patrão que, apesar de cruel, o deixou estudar. Seu livro mais importante reúne temas como liberdade pessoal e sabedoria. Sêneca (4 aC) era de Córdoba, então província romana, e apesar de rico vivia modestamente: bebia apenas água, comia pouco, dormia sobre colchão duro. Acusado de conspiração contra Nero, foi condenado ao suicídio. Em seus diálogos reflete a respeito do desafio de manter a serenidade diante das adversidades e viver bem em um mundo em constante mudança. Marco Aurélio (121dC), o imperador mais amado pelos romanos, quando saía para alguma cerimônia oficial fazia-se preceder por um criado que carregava uma tabuleta onde se lia: ‘Lembra-te de que vais morrer’,  aviso constante a si mesmo sobre o caráter frágil e precário da vida e, também, sobre a necessidade de não se deixar seduzir pelo poder.  Sua obra é um diário pessoal em que, muito influenciado por Epíteto, registrou reflexões para se manter racional e ético diante dos percalços da existência.

Os estoicos trouxeram à luz a doutrina segundo a qual para alcançar a serenidade é preciso antes de tudo diferenciar aquilo que depende de nós do que não depende. Fazer essa distinção é fundamental, pois ela condiciona o acesso à sabedoria e à tranquilidade. O insensato, desejando coisa diferente da realidade, torna-se escravo de suas opiniões, desejos, julgamentos. O sábio, ao contrário, indiferente aos acontecimentos que não estão em seu poder mudar, consegue se colocar acima de transtornos como angústia, inquietação, ansiedade. O estoicismo como filosofia da liberdade (escolher como viver) é também a filosofia da vontade (querer viver uma vida digna).
Antes do ponto final lembremos Montaigne, 15 séculos depois dos estoicos e um dos mais fiéis seguidores do estoicismo. Assim escreveu nos seus ‘Ensaios’, o gênero literário que criou: ‘Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração, e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu de fato.”

Trocando em miúdos, no caso em foco quantidade não significa qualidade.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.