Em 2017, dentro do propósito de preparar o Japão para acolher e impressionar bem visitantes estrangeiros que estariam no País para as Olimpíadas de 2020 (adiadas para 2021 por conta da epidemia de Covid), governo e iniciativa privada uniram forças para concretizar projetos de 17 reconhecidos arquitetos e designers de várias regiões do planeta. O alvo do olhar dos profissionais eram os banheiros públicos de Shibuya, um dos bairros mais movimentados da capital. Esses espaços deveriam ser redesenhados segundo a marca da contemporaneidade.
A ideia, que teve origem na Fundação Nippon, era enaltecer tais instalações sanitárias como símbolos da hospitalidade e higiene, qualidades tradicionalmente relacionadas à cultura japonesa. O último banheiro foi inaugurado em 2023, ano em que se rodou o filme cujo título está em epígrafe e teve como criador e roteirista o cineasta alemão Wim Wenders. ‘Dias Perfeitos’ foi concluído em apenas 17 dias e selecionado para o Oscar de melhor filme internacional na edição de 2024. Não levou o prêmio, que ficou com ‘Zona de Interesse’, produção inglesa. Mas vem conquistando grandes públicos, especialmente depois de disponibilizado pelo canal Netflix. Os banheiros de Tokio são parte essencial do filme. Eles impressionam.
Cada um é retratado como microcosmo que reflete e contrasta com seu entorno. O maior deles exibe paredes em concreto aparente que se erguem de forma aleatória. O mais surpreendente foi inspirado num método tradicional japonês de embalar presentes chamado ‘origata’. Entre os espetaculares se encontra o de paredes de vidro colorido, preenchidas com um gás que as torna opacas quando algum transeunte entra. O arquiteto responsável por esta obra explicou que a ideia era unir limpeza (o vidro transparente permite ver de fora o interior) e privacidade (ao trancar a porta os vidros vedam a luz, impedindo qualquer intrusão de olhares indiscretos).
Quando a Nippon e o governo japonês convidaram Wim Wenders para conhecer os banheiros já concluídos, a intenção era realizar um documentário sobre o sistema inovador. O cineasta não apenas ficou impactado com a cultura sanitária japonesa, como viu ali a oportunidade de transformá-la em ficção. Assim, em lugar de documentário, fotografia ou curta-metragem, propostas que lhe foram sugeridas, optou por criar um longa com a finalidade de mostrar, além de outras coisas, que, apesar da alta tecnologia aplicada aos projetos, eram as mãos de um homem simples as responsáveis pela higienização do local, tarefa executada com tanto zelo, concentração e calma que desvelava algo maior, muito presente na cultura japonesa, e que tem na palavra ‘ikigai’ um sentido transcendente.
O conceito contido em ‘ikigai’ convida a desacelerar e refletir sobre o que realmente importa em cada jornada humana. A etimologia, a ser traduzida por ‘razão de viver’, explica de forma precisa a necessidade de combinar com equilíbrio quatro áreas que deveriam compor uma existência: o que se ama, o que se faz bem, o que o coletivo pede ao indivíduo, o que fazer para se sustentar.
Encontrar o ‘ikigai’ pode trazer felicidade, realização e até longevidade a uma pessoa, pois oferece um motivo diário para se levantar da cama. Não por acaso, a cena inicial tornada recorrente no filme é o despertar do protagonista, Hirayama, que em todo alvorecer se levanta de seu ‘futon’ com sorriso luminoso.
Os críticos têm se surpreendido com o fato de um diretor alemão conferir tanta sensibilidade artística a um filme focado inteiramente em outra cultura, muito diferente da germânica, e com suas próprias características e peculiaridades assimiladas através do cotidiano. Entretanto, Wim Wenders já havia se declarado admirador de Yasugiro Ozu, diretor de ‘A rotina tem seu encanto’, cineasta que buscou em outro conceito nipônico, o wabi-sabi, motivação estética para mostrar a beleza da imperfeição, da transitoriedade e da simplicidade.
A história construída em ‘Dias Perfeitos’ é um drama delicado. Hirayama, vivido por ator japonês bastante popular, Koji Yakushi, trabalha como zelador de banheiros e parece satisfeito com sua vida simples. Segue um dia-a-dia bem marcado e dedica o tempo livre à paixão pela música, pelos livros e pela fotografia da natureza, especialmente a de copas de árvores cujas sombras mudam segundo a posição dos raios solares, fenômeno ao qual os japoneses chamam ‘komorebi’. Seu passado é gradualmente revelado através de uma série de encontros inesperados, no que se pode convencionar chamar de segunda parte da história. Vislumbra-se aí por entrelinhas o motivo de ter ele optado pela solidão como jeito de sobreviver, utilizando o silêncio a seu favor, mas fazendo de curtos diálogos entre figuras do presente e do passado momentos poderosos de esperança.
Embora seu olhar traia alguma melancolia, há serenidade, alegria, gratidão, louvor à vida no seu autoexílio.
Sentimentos universais não são delimitados por latitudes e por isso alcançam todos os humanos. Nos minutos finais a cena emocionante embalada por Nina Simone dá mostras disso. E nos iniciais também: inesquecível é a cena cuja trilha sonora, ‘House of the rising sun’, canção do folk americano dos anos 60, Hirayama ouve na fita cassete enquanto atravessa as monumentais vias de Tokio em sua kombi.
Em nossa era saturada de estímulos, mensagens incessantes, excesso de imagens e estrépitos, insuportáveis ostentações, onde se procuram dinheiro e prestígio como moedas para alcançar sucesso e felicidade, ‘Dias Perfeitos’ mostra como é necessário pouco para viver um cotidiano simples mas rico em harmonia, dignidade e sentido. É um filme que pode aquietar o espírito, pacificar a alma e saciar alguma sede de sentido.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.