Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará? Quando terminei a leitura do romance A casa sobre rocha do escritor francano José Lourenço Alves, fiquei por um tempo sob o peso da presença onipotente do destino, Destino com letra maiúscula como se tratasse de uma divindade grega. Logo me peguntei erguendo lentamente o rosto da última página: existe tal força geradora, propulsora e determinante das relações humanas? Seja como for o entendimento que tenha o leitor para essa questão filosófica antiga, talvez termine a leitura como eu: um gostinho de quero mais na boca e um saudoso adeus ecoando nas retinas. Adeus Robertinho, adeus Joãozinho. Adeus Geruza e Aurora. Com essas personagens realistas habitei o esconderijo do criador desse universo altíssimo.
Aqui o destino é força da qual nada ou ninguém escapa, como a força da gravidade que faz a Terra, nossa casa solta no espaço, permanecer fixa na órbita do Sol. A narrativa é disposta pra gente em sequência linear, no tempo das causas e seus efeitos em consequência. Acompanhamos a formação dos protagonistas, o desenvolvimento do arco dramático que lhes molda feição e caráter. Do fim da segunda Guerra Mundial até os anos de chumbo da ditadura militar em 1970, numa pequena cidade inventada no interior do Estado de São Paulo: eis o panorama. Seria possível superar o determinismo num país marcado pelo racismo e autoritarismo?
À parte outras significações que tem “a rocha” do título, desde a epígrafe o significado evidente é a referência ao texto bíblico. Entre as páginas do novo testamento (Mateus 7:24-27), a famosa parábola da casa sobre a rocha é uma exortação a quem teria ouvido as palavras de Jesus: construir a própria vida/casa sobre alicerce firme a fim de resistir às adversidades. Em contrapondo, quem constrói sua casa/vida na areia não tarda vê tudo desmoronar. Mediante os conflitos que sempre são de natureza sócio-político-econômica, vejamos mais de perto a trama no capítulo dezesseis.
Ao desdobrarmos esse capítulo, acompanhamos o dilema de uma mulher afrodescendente pobre que conseguiu se formar em História e se tornar professora. Em dado momento, ela precisa abrir mão de seus posicionamentos políticos ao ensinar com criticidade. Tanto em sala de aula quanto no jornal da cidade onde publica, decide silenciar-se não apenas para manter o emprego, mas para continuar viva evitando perseguição do policiamento ideológico da extrema direita. Acuada nesse dilema, mantém-se no jogo das aparências enquanto a mão do destino trama desfecho trágico compatível com a truculência do Ato Institucional número 5. O nome do jornal onde ela pública é “A voz da verdade”, indício claro da fina ironia do autor.
Quem nos conta a história é um narrador onisciente que sabe todo ocorrido e nos coloca direto com a matéria da vida, sucessivas revelações conectadas por diálogos diretos claros e sem rodeios. O autor evita análises psicologizantes, aquilo que se passa dentro da mente dos personagens que a tradição literária chama de monólogo interior, recurso literário que permitiria ao leitor acessar os pensamentos íntimos dos personagens revelando seus desejos, medos, frustrações e reflexões.
Portanto, as contradições entre o que os personagens pensam e o que eles fazem são percebidos sutilmente. Em brevíssimos comentários, o narrador abre pequenas janelas que soam como notas distraídas para quem do senso comum se afasta e percebe a conjuntura social implícita. São passagens discretas para o acesso às engrenagens da rocha impenetrável idealizada inicialmente.
Na estrutura social petrificada que representa de forma geral a solidez das desigualdades sociais no Brasil, as personagens deslocam-se sobre areia movediça como se o terreno fosse mesmo rocha firme enquanto o destino, sem alarde, os engole. A mão invisível assegurando a perpetuação dos privilégios de quem, no contexto da parábola bíblica, tem ferramentas e detêm os meios para produzir casa na rocha.
Embora a resignação apareça na superfície, os momentos de ruptura estão presentes na narrativa. Atenção para os comentários discretos do narrador (inseridos naquelas pequenas janelas abertas que soam como notas distraídas) ao alcance de outras perspectivas. Quando a crença de que não adianta lutar contra o que será, contra o destino alheio ao choro do recém-nascido, a terra/casa/rocha em que habitamos se revela sustentada por impermanências.
Livro acolhedor e conciliador, convive-se nele com personagens que aceitam seu destino sonhando dele escapar. A criação de José Lourenço Alves assemelha os personagens às pessoas que encontramos nas ruas de Franca, Manaus ou Rio de Janeiro e Curitiba, brasileiros e brasileiras que precisam contar com a sorte para lidar com a vida e superar suas sinas. Seria o destino um deus cruel? Tanto na vida quanto na obra, somos apenas grãos de areia na moenda que forja sólida rocha. Sendo assim, fica a cargo do leitor perceber ou não a realidade subjacente dos grãos de areia com os quais José Lourenço edifica sua Casa sobre rocha.
Baltazar Gonçalves é historiador e escritor poeta membro da Academia Francana de Letras