Aline Bei, Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Ana Martins Marques, Angélica Freitas, Bruna Lobato, Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Natalia Borges Polesso, Noemi Jaffe, Luiza Romão, Vanessa Maranha são alguns dos nomes lembrados nos círculos literários quando se faz o reconhecimento da qualidade da ficção feminina em língua portuguesa na contemporaneidade.
Destaco hoje aquela que intitula este comentário e encabeça por ordem alfabética a lista acima. Aline Bei foi a escritora eleita para figurar em setembro no Clube de Leitura que frequento na ‘Stop and Learn’, escola de idiomas dirigida por Eneida Nalini. A professora Eneida é mediadora dos encontros junto a Matheus Maritan, também professor de inglês. Ambos são versados em literaturas de língua portuguesa, inglesa e francesa, e possuem vasto repertório na área.
Grupos de leitura como este, a exemplo de outros existentes em Franca, no Estado e no País, ocupam lugar importante na disseminação de um hábito que deveria ser encarado como imprescindível para desvelamentos do nosso mundo interior e acréscimos à nossa humanidade complexa. O uso do verbo no futuro do pretérito, tempo das hipóteses, explica-se pelos resultados da última pesquisa ‘Retratos da Leitura no Brasil’: perdemos sete milhões de leitores de livros literários nos últimos quatro anos. É um dado lastimável, considerando que a arte milenar da palavra sempre foi um dos elementos que nos constituíram no Ocidente.
Aline Bei, 38 anos, é fenômeno lotando livrarias por ocasião do lançamento de seus livros e somando mais de 100 mil seguidores no Instagram. Ainda que se pondere não serem as redes sociais termômetros para avaliação qualitativa de uma obra, há que se levar em conta o peso representado pelo entusiasmo de jovens leitores por uma romancista que começou a publicar há apenas oito anos.
Seu primeiro livro, ‘O peso do pássaro morto’, de 2017, foi seguido em 2021 por ‘Coreografia do Adeus’ e, agora, ela nos presenteia com ‘Uma delicada coleção de ausências’, que foi a escolha para nosso encontro da semana passada. Os títulos formam uma trilogia, embora não tenham sido pensados como tal pela autora, que já frisou isso em diversas entrevistas. Mas, de fato, há neles muitos pontos comuns e um deles, a meu ver, lembra os romances de formação onde escritores como D.J. Salinger ( ‘O apanhador no campo de centeio’) exploraram o trânsito difícil da adolescência para a vida adulta. Porém, se este escritor nasceu e cresceu no século passado numa Nova York herdeira da cultura inglesa pujante, a escritora é jovem brasileira que pela via da extrema sensibilidade observa o contexto de violência, atraso e retrocesso que nos define neste momento da nossa história.
Daí que enquanto Caulfield, o herói de Salinger, se desenvolve em meio ao caos de emoções, percepções, sensações e lutos da adolescência, para habilitar-se saudavelmente a integrar o mundo adulto, Laura, a protagonista de Bei, que também vive dores semelhantes, sofre grandes tropeços em seu desabrochar porque seus traumas não são verbalizados, não encontram eco fora dela que vive numa cápsula, como a bisavó, a avó e a mãe que fugiu quando ela nasceu. Entre as ausências evidentes na história, a da comunicação entre as quatro gerações de mulheres é algo perturbador pelo que inibe nas vidas afetadas.
Laura também empreende fuga, sai da casa que parece aprisioná-la e nesse movimento de escape através da janela lembra outra personagem feminina inesquecível na dramaturgia- a Nora, de ‘Casa de Bonecas’, de Ibsen- e não se perca de vista que Aline Bei é formada em Artes Cênicas. Ao fugir, Laura repete a mãe e a avó, e isso confere ao romance um movimento que é circular e, portanto, parece sugerir mais fechamento que abertura, mais recorrência que renovação. A vida que se abre após a fuga dos espaços que seriam de se esperar acolhimento - casa, família e escola- talvez seja marcada no futuro pela solidão dos que escolhem a liberdade e poderia ser entrevista numa frase-dedicatória da autora ‘aos que existem sozinhos’.
Maria Valéria Rezende escreve sobre o romance: ‘abrir estas páginas é deixar-se levar por muitos caminhos, das arquibancadas de um circo a quartos fechados cheios de segredos, e perceber, com os cindo sentidos, a vida que aí se desenrola, não só enquanto palavra escrita, mas com suas dores, sabores, texturas, sons de pranto ou de canto, luzes e sombras.”
Para contar tudo isso, que em síntese é a história de quatro mulheres (uma delas ausente) de diferentes gerações dentro de uma mesma casa modesta frequentada por um adulto abusador e de vez em quando por um padre bizarro, ou seja, uma história marcada também por misoginia e machismo, Aline Bei criou uma nova forma de contar, já diferente da originalidade das suas escritas anteriores, reconhecíveis por frases fragmentadas, pausas surpreendentes, disposição inédita das palavras, usos inusuais do silêncio nos espaços brancos da folha. Em ‘Uma delicada coleção de ausências’ permanecem as minúsculas, ou a ausência das maiúsculas, mas a voz agora aparece em terceira pessoa e o recurso descritivo predomina. O que se diz é tão importante como o que se diz e é na forma que se encontra o ponto de partida para a discussão de toda obra, algo que seduz os críticos e pode racionalmente escapar ao leitor, embora este sempre seja tocado por ela. Por conta disso escreve Mia Couto na contracapa: ’Aline Bei confirma o domínio da arte de contar uma história ao mesmo tempo que inventa uma linguagem poética que devolve à escrita o encanto das vozes que a todos nos pertencem’.
‘O peso do pássaro morto’ foi vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura; ‘Pequena coreografia do adeus’ tornou-se finalista dos Prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura; ‘Uma delicada coleção de ausências’ chegou neste 2025 com tantas críticas positivas e acolhimento do público que já pinta como provável vencedor de mais uma láurea renomada.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.