Com o título em português ‘Identidade’ há dois filmes de origem inglesa na plataforma Netflix. O primeiro traduz objetivamente a palavra ‘Identity’ e seu gênero o remete às raízes do suspense. O segundo, no original ‘Passing’, de rica sinonímia, exibe história enraizada no campo social e no da psicologia. É um drama, sobre o qual teço os comentários que seguem.
Dependendo do contexto, ‘passing’ pode ser ‘passagem’, ‘passageiro’, ‘morte’ (de pessoa), ‘algo em movimento’, e até ‘a capacidade de alguém se apresentar como membro de um grupo racial ou étnico diferente do seu’, conceito usado nos Estados Unidos. ‘Identidade’ foi uma boa escolha do tradutor português para ’Passing’, história cujo tema mais amplo, o racismo, abarca todos os sentidos conferidos pelo vocábulo.
O filme de estreia da diretora Rebecca Hall tem roteiro baseado no romance homônimo de Nella Larsen e explora as complexidades da identidade racial na Nova York de começo do século XX. A protagonista, Irene Redfield, pertence a uma burguesia afro-americana que, oriunda do Harlem, vai se tornando cada vez mais visível extramuros. Casada com médico dedicado e cidadão lúcido, também de origem negra, ela é zelosa dona-de-casa, mãe de dois filhos adolescentes, com algum envolvimento em causas de benemerência.
Desde as primeiras cenas algumas indicações fixam o cenário novaiorquino e sinalizam para o tema mais maior da saga, o racismo. Vemos o movimento de passos nas calçadas; ouvimos frases entrecortadas que dão conta do verão tórrido. Um homem desmaia por conta da temperatura. Uma tia, em busca de presente para a sobrinha, descarta na loja a boneca ‘moreninha’ porque ‘até as crianças sabem que pessoas dessa cor só trabalham para os outros’.
Nesse cenário, recorta-se altaneira a figura de Irene em roupas claras e com chapéu de grande aba em organza sob a qual ela parece esconder o belo rosto. Para escapar do calor escaldante, vai a um salão de chá de hotel estrelado onde é reconhecida por colega de colegial a quem não via há doze anos. Trata-se da alegre e um tanto vulgar Clare Kendry, cujos cabelos platinados saltam à vista para negar ascendência mestiça e ostentar identidade branca. Casada com americano racista, tem uma filha e leva vida de luxo só aparentemente confortável. Sua infindável euforia disfarça insatisfação profunda e medo constante de ter sua verdadeira identidade revelada. “Raça, a coisa que a prendia e sufocava”, definiu a narradora do romance em frase que o filme não cita mas evidencia o tempo todo em imagens e diálogos primorosos.
O encontro dessas mulheres de peles semelhantes e personalidades distintas muda radicalmente suas vidas. A sedutora Clare passa a frequentar com assiduidade, e às escondidas de seu marido rico, a casa dos Redfield. Aos poucos conquista os filhos, os amigos, até o marido de Irene. E se Clare diz em certo momento e de forma explícita que gostaria de ‘ser Irene, morar no Harlem, viver aquela vida’, Irene nutre pela amiga sentimentos ambivalentes ora de admiração, porque sob alguns aspectos desejaria ser Clare, ora de repulsa, porque despreza seu esforço em esconder a origem. Tais sentimentos conflitantes só se resolvem no final em aberto, pela via da metáfora bem engendrada. É especialmente neste momento que ‘Passing’ assume com força toda a carga semântica do título e potencializa seus sentidos. Bastaria a cena final para elevá-lo a uma categoria que premiasse a arte do cinema acima de tudo, até dos interesses comerciais. ‘Identidade’ não é para grandes públicos, porque exige muito de quem o assiste, principalmente entrega para se emocionar e refletir a respeito de preconceitos, racismo e movimentos psíquicos.
É de se notar que desde o início da história instala-se uma tensão que aparece até em cenas prosaicas, como aquela em que o casal Redfield sonha em viajar para fora dos EUA, e conhecer o Brasil, que ambos imaginam imune ao preconceito racial. Essa tensão matizada nos incontáveis tons cinzentos, nos diálogos mais sutis, nas entrelinhas do que não é dito, em frases entrecortadas e olhares de angústia alimenta a narrativa e mantém o espectador o tempo todo atento ao que evolui de forma insidiosa, caminhando para a tragédia da qual seria impossível escapar, como é insinuado de início e como atesta o surpreendente final. Grandes atrizes defendem os papéis principais -Tessa Thompson e Ruth Negga. O médico é interpretado por André Holland. John, o racista odioso, por Alexandre Skarsgard. A trilha sonora é inesquecível, não apenas pano de fundo mas sinalizadora de momentos decisivos na história.
A escolha do p/b foi muito adequada ao contribuir para realçar aspectos internos e externos da obra, luz e escuridão, vida e morte, conflitos individuais e violência policial contra negros. Esta, aliás, não melhorou muito, decorrido quase um século da publicação do livro (1929) que dá origem ao filme (2021).
Enfim, temos aí uma obra sobre mulheres feito por mulheres a partir de uma história criada por quem teve lugar de fala. E, tanto quanto o racismo, aborda a questão do pertencimento e da alienação, duas temáticas que atravessam o tempo, perpassam gerações e estarão sempre em ordem prioritária quando se trata de trazer à baila reflexões essenciais aos humanos.
Obra extraordinária, ‘Identidade’ é brilhante perdido entre milhares de cascalhos disponibilizados pela Netflix.
A escritora Nella Larsen (1891-1964) foi abandonada aos oito anos pelo pai descendente de imigrantes afro-caribenhos. Criada por mãe das Indias Ocidentais e padrasto dinamarquês nos subúrbios de Chicago, foi hostilizada desde muito cedo pela vizinhança de imigrantes escandinavos. Sofreu contantes abusos de ordem racista. Tinha uma meia irmã de pele clara cuja existência inspirou a composição de alguns personagens de sua ficção. Viveu em trânsito entre Dinamarca e EUA, sempre buscando um lugar ao Sol e em crise de identidade, pois se não era branca como sua mãe e irmã, muito menos era negra como seu pai. Seu mundo, conta seu biógrafo, ‘era um submundo, historicamente irreconhecível e doloroso demais para desencavar.’
Em vida publicou dois romances exitosos, ‘Passing’ e ‘Quicksand’, ambos no mesmo ano, além de vários contos. Tornou-se conhecida como membro de um movimento literário celebrizado como ‘Renascença do Harlem’ e também é lembrada como expressiva figura do modernismo.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.