05 de dezembro de 2025
LITERATURA

A história de zero

Por Baltazar Gonçalves | especial para o GCN
| Tempo de leitura: 3 min

Zero resolveu que a melhor forma de sobreviver seria passar desapercebido. Sem ser notado, construiu sua vida para ser sozinho. Desde menino, quem o visse ensimesmado suspeitaria um tipo de autismo. Quando adulto estabeleceu-se num apartamento pequeno, nunca recebeu visitas. Por décadas trabalhou na secretaria da escola do bairro e era, de longe, o melhor porteiro que se teve notícia. Abria o portão com “bom dia”, fechava o portão com “até logo” e sorria nos dias fáceis.

Disciplinar eficiente na arte do anonimato, o corpo de Zero não era empecilho para o movimento coletivo porque também tornara-se absorvível, como fios de sutura pós cirurgia que sofrem degradação progressiva e são absorvidos pelo organismo depois de um tempo. Zero quase mudo, sua voz quando ouvida era logo esquecida. Zero teve existência monótona mas segura, até o dia em que morreu. Só depois de morto Zero viu sua vida povoada, pelo avesso assim agitada.

Aconteceu que nesse mesmo jornal em que lhes conto a história de Zero, a morte dele foi publicada por engano.  Zero reclamou com sua voz transparente ao telefone: “li a nota que vocês publicaram, houve um engano”. Mesmo confirmando estar vivo, não obteve sucesso e ouviu em resposta: “erro seu, nossa redatora cuidadosa não se engana”. O fato irritante tinha lá sua graça, toda gente sabe que é melhor olhar para o copo meio vazio e pensar que ele está meio cheio. Então Zero decidiu ir ao parque Fernando Costa espairecer ar fresco.

Nesse meio tempo, a notícia de sua morte espalhou pelas redes sociais feito samambaia em brejo. O proprietário do apartamento do “defunto” que é leitor do GCN, convencido que o silencioso inquilino jamais voltaria, resolveu trocar a fechadura e alugar o imóvel ainda hoje um pouco mais caro. Quando Zero retornou, estava preso fora de casa e inutilmente ligou para a imobiliária para escutar: “esse tal Zero rescindiu o contrato por morte, Deus o tenha”.

Era sábado, amanhã domingo e logo segunda: “tudo nessa vida passa”. Sem ninguém para pedir ajuda porque não tinha ninguém em sua vida, Zero passou o fim de semana no parque junto a outras pessoas em situação de rua. Nesse contexto sua invisibilidade ganhou significado mais amplo, quase religioso, a desconhecida sensação de pertencimento e comunidade. Pela primeira vez na vida Zero quase sentiu-se gente.

Sem banho e mal alimentado, nosso porteiro invisível voltou ao trabalho. O bem conhecido portão da escola pareceu-lhe a entrada do paraíso em plena segunda-feira. Zero apertou o interfone enquanto esboçava uma espécie de sorriso, era o máximo de uma interação social que podia exprimir, espontaneidade ensaiada por toda vida. Depois de uns minutos, o seu substituto na portaria retornou avisando pelo interfone: “respeite o morto, aqui não toleramos trote”. O diretor da escola foi avisado e com muitas suspeitas informou o sindicado dos servidores que “um maluco tenta se passar pelo finado”. Falsidade ideológica é crime, o sindicado devia agir imediatamente.

Na porta da escola, seu local de trabalho, Zero não tinha mais para onde ir. Aturdido e sem saber o que fazer, começou a gritar “eu sou eu, eu sou eu” até perder o fôlego e começar de novo. A falta de lógica o aturdia tanto que sua voz opaca, agora rouca, foi capturada pelos policiais acionados pelo sindicato. A lei chegava ao local para conter o meliante usurpador. 
Aos berros surdos {[(“eu sou eu”}]) os policiais meteram Zero na viatura. O procedimento era levá-lo à delegacia e apurar os fatos, mas quando passavam sobre o pontilhão da rua General Telles, assustado como rato que descobrisse ter vivido em ratoeira, Zero conseguiu abrir a porta da viatura em movimento e saltou sem governo. Feito passarinho de primeiras penas, longe do ninho, Zero voou sobre a passarela caindo no precipício da avenida Hélio Palermo.

Naquela madrugada, as pedras banhadas pelo Córrego dos Bagres sussurram sem que ninguém ouvisse: “eu sou eu”.

Baltazar Gonçalves é historiador e escritor poeta membro da Academia Francana de Letras