05 de dezembro de 2025
LITERATURA

A Casa Sobre Rocha

Por Sonia Machiavelli | especial para o GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 4 min
Divulgação
José Lourenço Alves

Em noite de luz e encantamento, preparada com o carinho percebido em cada detalhe, e sob clima de alegria e interesse pela literatura, José Lourenço Alves lançou na quarta-feira, 17, seu mais recente livro, o romance “A Casa Sobre Rocha”. O evento, acolhido pelo Sesc, teve grande público formado por leitores, escritores, acadêmicos, amigos, professores, estudantes do ensino médio e universitários. Regina Bastianini, professora, escritora, pertencente aos quadros da Academia Francana de Letras, esteve no palco ao lado do autor, num belo exercício de análise da obra literária, iluminando sentidos e despertando reflexões junto ao público. Como mediadora atuou com competência Isabela Trazzi, diretora da biblioteca do Sesc.

“A Casa Sobre Rocha” é título a ser integrado ao acervo da AFL, cujas paredes testemunharam a gênese do romance a partir da leitura e posterior avaliação do livro “A Casa Sobre Areia”, de Antônio Constantino, pelo acadêmico José Lourenço Alves. Este ocupa a cadeira que homenageia o já lendário escritor, advogado, orador, bibliotecário, jornalista e defensor da Constituição na Revolução de 1932.

A força intrínseca da obra repousa sobre a composição humana dos personagens, a organização equilibrada dos fatos que constroem a narrativa, a voz independente do narrador em terceira pessoa, a espontaneidade dos diálogos, a sutil crítica social que permeia a saga do começo ao fim; também sobre elementos que criam uma atmosfera e uma cartografia francanas para o desenrolar da saga, como notações geográficas, perfis de personalidades reconhecíveis na história da cidade, referências a instituições tradicionais.

A outra força é extrínseca e revela o generoso resgate de um autor valoroso por outro de igual grandeza e devotado à memória de seu patrono. Sob este aspecto, o livro emerge como lembrete para mostrar que a literatura de um povo está encadeada, ela se constrói também pelo reconhecimento daqueles que no passado contribuíram para construção da obra coletiva, no caso em foco a literatura francana. Os livros passam de uma geração a outra e vão chegando aos pósteros que legarão aos futuros as influências sofridas e a contribuição que acaba sendo de todos. ‘Escrevemos no presente os futuros antanhos’, sinalizou Guimarães Rosa e essa ideia parece adequada também à compreensão do processo onde as obras de uma cultura devem ser compreendidas de forma mais ampla.

José Lourenço Alves é escritor humanista e espiritualizado. No mar da filosofia, navega nas águas de Heráclito, conforme atestam os leitores que acompanham sua produção literária.  Acredita nas possibilidades de transformação dos seres, das coisas, das instituições, das sociedades, por conta da eterna mudança que a tudo permeia. Por isso, ao retomar o epílogo de “Casa sobre Areia”, não deixa para trás a protagonista inspirada em figura icônica na tradição dos tipos populares de Franca- Maria Capotinha. Não apenas a mantém viva em alguns parágrafos iniciais de “A Casa Sobre Rocha”, como imagina para ela um filho recém-nascido que se tornará adulto. Inexistente no romance de Constantino, cuja ação é datada dos anos vinte do século passado, será um dos protagonistas do enredo de  Lourenço, que se inicia décadas depois.

Ao desdobrar o desfecho trágico da personagem criando novo ser a partir da mulher tão espezinhada, e em torno do recém-nascido outras criaturas e situações, o autor imprime ao romance um sentimento de esperança, pois toda criança que nasce é promessa de renovação. Lourenço transforma o ponto final de Constantino em reticências ou numa conjunção aditiva. O fim imaginado por um se torna, pelo milagre da criação literária, recomeço, permitindo ao leitor fazer uma analogia com a Vida, a todo momento marcada pelas impermanências e transformações.

Toda ficção nasce de um sonho que se concretiza em palavras. O mais recente sonho de Lourenço transformou-se no romance “A Casa Sobre Rocha”, que será lido de diferentes maneiras pelos leitores, cada um conferindo à saga e ao discurso do narrador o resultado de suas percepções. A todos irá tocar, mobilizar, inspirar.

No mundo fragmentado deste século onde vamos sobrevivendo a guerras e intolerâncias, violências e desigualdades, mentiras travestidas de verdade, e vice-versa, apostar em humanismo, fraternidade, restauros e esperanças pela via da literatura, como o faz José Lourenço Alves, pode levar pessimistas a pensarem em peixes na piracema. Talvez tenham razão, pois escritores genuínos são mesmo como esses peixes que, lutando contra a força contrária das águas, buscam as nascentes para a desova. Interessados pela complexidade humana, não raro precisam nadar em sentido contrário ao da maioria, até que suas palavras, carregadas de fé na existência, encontrem lugar fértil no coração do leitor e ali se depositem iguais a sementes que um dia despertarão. Como brotaram na mente e no coração de Lourenço as palavras de Constantino, as de “A Casa Sobre Rocha” hão de germinar, no coração do leitor sensível, sentimentos de esperança diante da certeza de que o movimento constante da vida produz mudanças que podem ser sutis, como lembrou Regina Bastianini, mas são incessantes e irrecorríveis no rumo do aprimoramento do indivíduo e da sociedade.

Em tempo. No âmbito do livro enquanto objeto físico, impõe-se um destaque para o bem cuidado projeto gráfico da Ribeirão Gráfica Editora e para a capa assinada pelo arquiteto Ivo Indiano, obra de arte tão bela quanto provocativa.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.