05 de dezembro de 2025
NOSSAS LETRAS

‘Maquiavel - 500 anos de O Príncipe’

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 6 min

"Os fins justificam os meios é uma frase de Maquiavel’, me garantiram dez entre dez pessoas com quem conversei antes de me sentar para escrever esta resenha. É um equívoco. A frase é, na verdade, o verso de um poema do romano Ovídio em ‘Heroides’, antologia de cartas líricas de mulheres abandonadas por seus amantes, datada da segunda década a.C.

Mas é bem provável que o escritor florentino (1469-1527) não se recusasse a apor ao aforismo sua assinatura. Na obra máxima que o celebrizou, ‘O Príncipe’, concluída durante o ano de 1513, mas só publicada postumamente em 1532, Niccolò di Bernardo dei Machiavelli descreve as complexidades da política e argumenta que, para um governante, os resultados de suas ações são mais importantes do que os princípios morais que acaso o mobilizem.

Em linguagem clara e inspirado em Cesar Borgia (1475-1507), o príncipe cardeal e chefe militar de quem foi amigo, construiu um compêndio político bem arquitetado, com base na realidade férrea, injusta, implacável. Seu objetivo foi descrever o tipo de comportamento necessário a um governante que pretendesse ascender ao poder e nele perdurar.

Nos últimos cinco séculos, ‘O Príncipe’ teve tantas traduções ao redor do mundo que se torna impossível contabilizá-las. Em nosso país, por conta de ideias obscurantistas, a primeira edição em português só veio a público em 1932, o que não significa que o livro fosse desconhecido por intelectuais brasileiros antes disso: Machado de Assis o possuía na versão francesa, em volume que se mantém no seu acervo, preservado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Ultimamente, ainda em comemoração ao quingentésimo ano da obra poderosa, foram publicados no Brasil, a exemplo do que aconteceu em outros países do mundo ocidental, inúmeros títulos sobre livro e autor.

Fui presenteada por minha sobrinha Tatiana Machiavelli, doutora na UFGO, com um exemplar digno de louvor. Sob direção de Fábio Kataoka, coordenação editorial de Carlos Kataoka, direção de arte de Robério Gonçalves, tradução de Geórgia Vicente e adaptação e revisão de Suely Paiva, a publicação da Editora Pé da Letra é um primor, já a partir da capa de fundo preto ilustrada com foto da estátua de Maquiavel, do escultor Lorenzo Bartolini, que turistas podem ver no Museu dos Ofícios, em Florença. O título destaca a palavra Príncipe em dourado. O volume tem 120 páginas.

Tratado político considerado uma teoria do Estado Moderno, o livro é composto por 26 capítulos curtos e se abre com dedicatória a Lourenço II de Médici (1492–1519), Duque de Urbino, encerrando-se com carta a Francesco Vettori, embaixador de Florença junto ao Papa. Com conselhos, sugestões e ponderações baseadas em conhecimentos da esfera geopolítica de então, e também pela via da análise  dos perfis e ações de outros governantes, como os imperadores romanos desde Marco Aurélio, o autor pretendia, através de suas ideias, ganhar a confiança do duque, que lhe concederia algum cargo, o que não aconteceu. Não há registro sobre o fato de Lourenço, morto seis anos depois, ter lido a obra a ele dedicada; mas caso o tenha feito, não respondeu às necessidades do autor, que então se encontrava em situação de miséria, conforme relata na citada carta enviada ao embaixador: “(...) estou em ruína e não posso permanecer assim por muito tempo, sem que me torne desprezível por pobreza(...)”

Uma leitura apressada ou enviesada de ‘O Príncipe’ pode levar a entender o escritor renascentista apenas como um defensor da falta de ética na política. Para avaliar de forma mais ampla  seu pensamento, é necessário ter olhos para as circunstâncias da época, quando a península Itálica estava dividida em diversos estados, concebidos  como repúblicas, reinos, ducados e Estados Papais. As disputas de poder eram constantes, a ponto de os governantes contratarem exércitos mercenários para se defenderem.

A obra de Maquiavel revela sua consciência diante do perigo do estilhaçamento do território, que poderia ficar à mercê das grandes potências de então, França, Inglaterra e Espanha. No último capítulo, revelando cultura histórica e entendimento do risco da fragmentação, argumenta em tom de oratória:

“E se, para conhecer a virtude de Moisés foi necessário que o povo de Israel estivesse escravizado no Egito, para conhecer a grandeza do ânimo de Ciro, que os persas fossem oprimidos pelos medas, e o valor de Teseu, que os atenienses estivessem dispersos, também no presente, querendo conhecer a virtude de um espírito italiano, seria necessário que a Itália se reduzisse  ao ponto  em que se encontra no momento, que ela fosse mais escravizada do que os hebreus, mais oprimida que do que os persas, mais desunida do que os atenienses, sem ordem, sem chefe, batida, espoliada, lacerada, invadida, e tivesse suportado ruína de toda sorte.’

Os editores de ‘Maquiavel - 500 anos de O Príncipe’ tornaram ainda mais agradável e instigante a leitura deste clássico. Pessoalmente, considerei a edição bastante superior às três às quais já tive acesso durante a vida, todas um pouco confusas nos adendos desnecessários e sem a tradução de algumas frases latinas. Outro ponto a favor é uma pequena Introdução que, graças ao poder de síntese do autor, oferece uma enxuta, mas essencial biografia de Maquiavel para que se compreenda sua formação e pensamento:

“A família de Nicolau era de origem toscana e participou de cargos públicos por mais de três séculos. Desde muito cedo o menino se dedicou aos estudos. Aos sete anos começou a aprender matemática e latim. Logo depois estudou grego antigo. Em 1494, aos 24 anos, tornou-se secretário da república de Florença e copista do professor de literatura Marcelo Virgilio Adriani. Com 29 anos é nomeado chanceler. Permaneceu nesse cargo por mais de quatorze anos. Durante esse período cuidou de 23 missões no exterior. Em 1502 César Bórgia o nomeou representante do governo de Florença junto ao duque Valentino.

Em 1505 estabeleceu o projeto de milícia nacional para substituir as milícias mercenárias. Após seu trabalho para o governo, perdeu o cargo quando a república acabou, em 1512. No ano seguinte foi preso e torturado por conspirar para a eliminação do cardeal Giovani de Médici. Exilado nos arredores de Florença, escreveu ‘O Príncipe’. Anos depois, beneficiado com anistia pelo papa Leão X, retornou à Florença, onde compilou a história da cidade (...) Em 1527, adoecido depois de uma viagem a Cività Vecchia, morreu na pobreza, longe do poder.” Três anos antes, tinha visto publicado seu texto para teatro, ‘A Mandrágora’, sátira corrosiva cujo tema era a corrupção na sociedade florentina.

Ainda no âmbito do livro físico, a escolha dos editores por selecionar frases impactantes, extraídas dos capítulos e destacadas nas orelhas e em várias páginas, é contribuição que enriquece e facilita a leitura. Destaco algumas, pelo seu valor atemporal.

“Governar é fazer acreditar.”

“O tempo lança à frente todas as coisas, e pode transformar o bem em mal e o mal em bem.”

“Poucos veem o que somos, mas todos veem o que aparentamos.”

“O primeiro método para estimar a inteligência de um governante é olhar para os homens que tem à sua volta.”

“São tão simples os homens e obedecem tanto às necessidades presentes que quem engana encontrará sempre alguém que se deixa enganar.”

“Os que vencem, não importa como vençam, nunca conquistam a vergonha.”

“Tornamo-nos odiados tanto fazendo o bem como fazendo o mal.”

“Como é perigoso libertar um povo que prefere a escravidão!”

Para finalizar. A respeito de ‘O Príncipe’, parece terem se esgotado tanto a exegese quanto os comentários, tantos foram os que a estes e àquela se dedicaram.  Mas lê-lo se torna cada vez mais importante neste século XXl para perceber como uma doutrina que desvela as maneiras de agir para dominar o povo tem dado lugar a diversas formas ditatoriais de governo em nosso tempo. A conferir.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.