05 de dezembro de 2025
NOSSAS LETRAS

Presente de casamento

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 4 min

Porque era maio, mês de casamentos, a loja tinha tido movimento grande todos os dias daquela semana. Era sábado e, aproveitando um instante mais tranquilo antes de baixar a porta, estava fazendo contas para ver a  quanto chegava o valor de minhas comissões. Colegas me consideravam boa vendedora e tinha me esforçado muito nos últimos tempos, porque todo dinheiro seria bem-vindo: também era uma das que haviam escolhido aquele mês para se casar.

Entraria em licença na segunda-feira. Dona Lídia, minha patroa generosa, entendia a necessidade de uns dias para me preparar, embora não fosse fazer festa, só mesmo a cerimônia religiosa. Mas eu precisava agilizar algumas coisas: experimentar o vestido alugado porque havia emagrecido e tinha receio de que necessitasse de reparo; testar o penteado com a grinalda; verificar se o buquê estava pronto...

Já me ajeitava para encerrar o expediente quando vi entrar na loja a mulher morena e gordinha, de sorriso simpático. Logo de cara chamou minha atenção uma franja branca e larga nos seus cabelos negros, lisos e compridos. Parecia ansiosa mas me cumprimentou com um boa-tarde alegre enquanto tirava do rosto seus enormes óculos escuros. Usava jeans e uma blusa ampla que encurtava um pouco a sua silhueta. No conjunto aparentava leveza. Estava em busca de presente para uma noiva.

Trabalhando naquele lugar há algum tempo, tinha aprendido a lidar com clientes de todo tipo e aquela mulher, logo percebi, não estava interessada em nada muito caro, pois foi direto à seção de objetos decorativos de menor preço. Tentei interessá-la por um aparelho de jantar que, fosse eu a noiva, gostaria de ganhar, pois eram práticos e bonitos, para quatro pessoas, como tinha se tornado comum.

As famílias diminuíam, argumentei com a freguesa, não mais vendíamos aqueles de quarenta e duas peças. Também lhe mostrei um faqueiro inox simples, para uso diário do casal que estaria começando a vida. Que tal uma panela de pressão, moderna, bem segura, oito litros? Toda dona-de-casa precisa de uma. Ou um liquidificador? Tem tido muita saída o novo modelo, moderno e bonito, faz falta na cozinha e nem sempre os convidados se lembram disso, argumentei.

A mulher andava pela loja, eu a seguia mantendo discrição e, de vez em quando, fazia minhas observações. O ofício de vendedora me exigia paciência, mas eu já estava acostumada a esperar que a compradora se decidisse em algum momento. Ninguém entrava naquela loja só para ver, situação bem comum nas lojas de roupas. Quem chegava ali estava decidido a comprar ‘um presente’ ou ‘uma lembrança’, a expressão variava, cada qual de acordo com suas posses e simpatias por aqueles a quem pretendiam agradar.

Como quem quisesse apenas ajudar, perguntei à mulher da mecha branca como era a noiva, o seu estilo. Ela respondeu que se tratava de moça modesta, humilde, que tinha precisado trabalhar desde cedo e agora havia encontrado um bom rapaz com quem iria se casar. Mas ela não conhecia a jovem, só de ouvir falar. Era parente distante de seu marido, que fazia questão de ir à cerimônia na igreja e depois à festinha que os parentes estavam preparando com alguma dificuldade. A noiva não sabia, era surpresa para ela, só uns salgadinhos e bolo, sabe? Gente pobre luta com dificuldade, não é?- dizia baixando o tom.

O casamento seria dali a alguns dias, mas ela se decidira a comprar o presente naquele sábado porque havia visto na porta da loja um cartaz indicando ‘liquidação’. Onde estavam os artigos da ‘liquidação’? Mostrei-lhe alguns pratos de louça com estampas geométricas que sairiam com grande desconto porque faltava ao conjunto de meia dúzia o prato que uma criança havia quebrado num esbarrão estabanado; uma frigideira com revestimento tefal cujo cabo tinha leve defeitinho, mas ninguém perceberia; travessas Colorex de cor caramelo que formavam jogo e poderiam durar para sempre se a dona fosse cuidadosa; uns vasos coloridos de louça;  até arranjos com flores artificiais eu mostrei.

Nada parecia servir aos objetivos da mulher. Até que ela viu uma caixa com copos para água. Pegou a embalagem, olhou detidamente, gostou da apresentação, perguntou se havia desconto pagando à vista. Respondi que já estava na promoção pela metade do preço. Decidiu-se, enfim. Fechamos negócio e ela quis escrever um cartãozinho ali mesmo, no balcão, desejando felicidades aos noivos. Deveria ser fixado na caixa antes de embalar, fez questão de dizer. O marido iria aproveitar o domingo para levar o presente na casa da noiva.

Enquanto caminhávamos em direção ao caixa ela disse: “Acho que a noiva vai gostar, ela é muito ‘simplezinha’, me disseram. Nem adianta dar alguma coisa de muito valor, copos de cristal, por exemplo, talvez ela nem entenda a diferença entre vidro e cristal. E copo quebra com facilidade, sabe como é; ainda que ganhe muitos, sempre serão de utilidade.”

Sorri diante da observação, agradeci a preferência e dela não me lembrei mais até o dia do meu casamento. A última mulher que eu havia atendido antes da minha licença estava entre as primeiras convidadas que vi na igreja quando iniciei a caminhada rumo ao altar. Sua mecha branca erguia-se atrevida num topete levemente alto.

Ela me olhou com olhos arregalados onde percebi o brilho indisfarçável da surpresa associada ao constrangimento. Não foi à festinha-surpresa preparada pelos meus parentes, mas bem que eu gostaria de tê-la encontrado para agradecer pelos copos americanos que recebi.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.