“Dia desses minha vida vai melhorar”, ouvi o menino dizendo a uma turista que falava espanhol e havia se sentado em mesa próxima à que eu ocupava com amigos, na calçada. Fazia um calor sufocante naquela quinta-feira de janeiro. Estávamos no Recife, perto da rua dos Judeus, sentados debaixo de duas árvores centenárias. Esperávamos que nos trouxessem o chopp pedido há quase meia hora. Estavam se organizando lá dentro do bar. Padrão de atendimento no Nordeste bem diverso da gente do sul do País, sabíamos. Por ali a pressa era desconhecida. Eu atribuía a lerdeza ao calor, ao mormaço, à secura.
De onde estava, vi quando o menino miúdo, moreno de cabelos encaracolados e sujos, chegava com umas folhas compridas que pareciam ser de cana. Era singular sua abordagem junto aos adultos: começava por perguntar de onde era a pessoa, se estava gostando do lugar, onde já tinha ido. Enquanto falava, suas hábeis mãos partiam cada folha em quatro ou cinco tiras, não me lembro bem, mas não a desprendia totalmente do caule. Em seguida, com calma, enrolava-a pela ponta, formando pétala que se juntaria a outras na construção de uma rosa verde e áspera. Notei que quando havia crianças no grupo que o observava, o motivo variava para um peixinho que parecia pendurado a uma vara de pescar. Que outras coisas aquela criança saberia fazer com as folhas verdes e cortantes?
Ao ver que já tinha concluído seu trabalho ao lado e recebido algum dinheiro, chamei-o, interessada na sua arte. Perguntei-lhe se saberia fazer um navio e ele me disse que navio não, mas barquinho sim. Quis combinar o preço, ele respondeu que depois eu pagaria o que achasse justo.
Saiu por instantes e foi buscar folhas novas, por certo mais flexíveis. Pelo que entendi, quando elas se desidratavam costumavam ressecar, tornavam-se difíceis de manusear. Logo depois ele estava de volta. Seu cabelo volumoso e levemente acobreado na pontas espetadas não via pente há muito tempo. A bermuda encardida não permitia supor a cor original. Os pés descalços pulavam os paralelepípedos da rua sob o sol escaldante daquele dia. Duas tatuagens mal feitas se destacavam nos ombros nus, lembrando âncoras acinzentadas. Perguntei-lhe se queria beber alguma coisa- água, suco, refrigerante? Ele pediu suco de graviola. Ao receber o copo, cumprimentou o garçom pelo nome, o que me fez deduzir que sua presença por ali era frequente.
Suas mãos trabalhavam ligeiras rasgando as folhas compridas que me explicou serem de uma palmeira comum por ali; por alguma associação de formato elas me lembraram palmas-de-santa-Rita. Tinham um cheiro bom quando esmagadas pelas pontas dos dedos. Perguntei-lhe a idade e ele disse: doze. Eu lhe daria nove, pela altura. De onde era? Dali mesmo, morava perto do museu dos mamulengos. Ah, respondi, fui lá há pouco ver os bonecos. Em que ano você está na escola?
Sem parar de tecer as folhas ele respondeu que havia saído no fim do primeiro ano, mas sabia ler, escrever, assinar o nome. E por que havia parado de estudar? Porque a mãe tinha morrido de Covid e ele havia ficado sozinho, quer dizer, com o tio, irmão da mãe. O tio trabalhava no porto, só o via à noite. Durante o dia tinha de se virar fazendo alguma coisa. Por exemplo, aquele artesanato que uma assistente social havia lhe ensinado no tempo em que tinha estado num abrigo.
No Carnaval vendia água para os foliões nas ruas. Em outros períodos, frutas, chicletes, biscoitos. Senti seu leve orgulho ao dizer que esmola nunca tinha pedido. Ganhava o seu almoço. A janta o tio fazia, não podia reclamar dele. Mas o tio, que sabia colocar navios dentro de garrafas vendidas para os gringos, e iria lhe ensinar como fazer isso, pretendia se casar e o menino não sabia se a mulher dele iria aceitá-lo junto.
Quando não estava muito cansado ou bêbado, o tio lhe narrava histórias, parecidas com as que a mãe também lhe contava antes de ficar doente. Sobre os holandeses que tinham brigado com os portugueses há muito tempo nas terras do Nordeste. E sobre um certo holandês por ali aparecido e apresentado à mãe um ano antes de o menino nascer. “Era o meu pai, sou filho de holandês, visse?” Neste momento me dei conta de que não havia perguntado qual era seu nome e então o fiz. Ele disse com galhardia: Maurício Margrafe. E qual é o nome de seu tio? Domingos Calavar, falou. Surpresa com a ironia do embaralhar de nomes históricos com a verdade das ruas, disse-lhe se não seria Calabar o sobrenome do tio. E ele afirmou que não, era Calavar, com v.
Por alguns minutos Maurício se manteve atento, o que parecia ser o seu jeito natural, cabeça baixa, dedos magros trançando as folhas. Já estava finalizando quando me falou como se fizesse uma confissão. “Meu pai vem me buscar, meu tio falou. O navio onde ele trabalha chega no fim do ano. Aí eu vou conhecer o meu pai. Hora dessas minha vida vai melhorar” Essa última era a frase que havia me fisgado, meia hora antes, dita pela voz infantil.
Talvez tudo fosse ficção para comover possíveis compradores de seu artesanato. Talvez fosse história real nascida entre pedras como certas plantinhas resistentes. Só sei que quando ele acabou seu trabalho e olhou direto nos meus olhos, vi que os seus eram magnificamente azuis. Dei-lhe uns trocados, ele considerou que estava bom, sorriu gratificado.
Gostaria de ter continuado aquela conversa, mas o varredor da rua gritou de um jeito alegre: “Ô cambada!”, desviando a atenção de Maurício para um grupo de moleques com pouca roupa e muita disposição que corriam em direção à praia para jogar futebol. Ele se juntou a eles, depois de me dizer “tchau, brigado”. Juntou-se ao grupo animado e brincando com o colega um pouco mais alto, acertou-lhe um drible e com o pé direito roubou-lhe a bola.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.