O banco rangeu numa reclamação tímida quando ela se sentou. Nem era obesa, percebi ao resvalar meu olhar de soslaio. Vi o vulto desabando sem cuidado e pesquei alguns detalhes de gosto discutível. As unhas do pé pintadas na cor framboesa se destacavam próximas ao verde limão da sandália que parecia ser nova. Ela estava incomodada com alguma coisa e se abaixou para desatar a tira do calçado que lhe fazia marcas nos tornozelos. Em movimento de volta, percebeu que eu havia visto seu gesto. Isso lhe bastou para iniciar uma conversa:
- Meus pés incharam, tá vendo?
E antes que eu respondesse, emendou: - Você é de onde?
Respondi sem muita vontade, porque se há lugar que me deixa estressada é aeroporto, e mais ainda suas salas de espera em cidades pequenas. Estávamos numa delas, norte de Minas, espaço improvisado por conta de visível reforma. Eu agradecia mentalmente ter encontrado lugar para sentar e a mulher ao meu lado parecia sentir a mesma coisa. Suspirou antes de me revelar seu estado de espírito momentâneo e de onde vinha:
- Estou viajando desde ontem, quer dizer, anteontem. Na quinta-feira a essa hora quase entrei numa confusão no aeroporto de Miami. Porque não tolero truculência. Ah! Não!
Eu confesso que a curiosidade é um dos meus traços, às vezes um defeito. Aquelas informações na voz rouca me fizeram sair do marasmo em que me encontrava na tarde quente. Ali com certeza não havia ar condicionado. Enquanto mentalmente eu elaborava um comentário besta qualquer, ela desatou a falar:
- Americano trata brasileiro muito mal. Só brasileiro não; toda a gente latina. Imagine que vi uma policial deste tamanho. Estendeu os braços para mostrar a largura dos quadris da outra e completou: ‘Ela queria enquadrar uma garota que pela cara me pareceu ser peruana.’
Indaguei com olhos surpresos e sobrancelhas voluntariamente arqueadas, querendo saber por qual razão a policial americana queria prender a jovem latina. Ela continuou:
- A coitada trabalha lá como faxineira e as patroas deram a ela uma semana de férias no Brasil para ver a família.
Com o estender da conversa, ficou retificado que embora os traços faciais fossem similares, a passageira vítima de maus-tratos não era peruana e sim colombiana. Ela prosseguiu:
- A moça, franzininha que só vendo, se assustou quando a policial investiu contra ela falando aquela língua que a pobre ainda não tinha tido tempo de aprender. Pediu o passaporte e outros documentos, entregues com mãos trêmulas. Como não tolero gente violenta, cheguei perto e reagi dizendo que a moça não estava entendendo e eu ia traduzir. A brutamontes me olhou feio, falou em nos levar a ambas para a delegacia (porque lá, já viu, em se tratando de imigrante, qualquer coisinha é delegacia), mas quando eu me identifiquei ela baixou o facho, resolveu rapidinho a situação, a mocinha correu chorando ao ouvir a última chamada de seu voo. Desejei-lhe boa viagem.
Fiquei com a impressão de que aquela vizinha de banco tinha feito tal preâmbulo só para me dizer quem era. Estava comichando para revelar sua profissão para mim, não sei por qual razão. É possível que fosse questão de audiência e não de simpatia. Junto a nós, no banco, um velho senhor cochilava enrolado num cachecol que lhe tapava os ouvidos e não fazia sentido no verão brasileiro. Estava em trânsito como nós, com certeza. Pareceu-me um cantor decadente de tango.
Eu tinha fechado o livro que estava lendo assim que a mulher chegou. Instigada pelo status que fizera a policial americana baixar a crista, perguntei como uma bisbilhoteira que desejava esticar a conversa para ver no que dava:
- Qual é sua profissão?
Alteando de leve a voz, talvez para ser ouvida também pelo velho que de repente acordava, ela desvelou no timbre sua grande satisfação:
- Sou delegada de polícia!
Considerei que aquele era um trabalho perigoso e disse. Também quis saber em que lugar ela desempenhava a função. Suas palavras escandidas foram além do topônimo de origem tupi. Explicou que era em uma cidade de menos de 20 mil habitantes, no Norte do Amazonas, bem perto de Roraima. E ali aconteciam coisas de que até Deus duvidava. Mas ela não deixava nada passar batido, nem passava pano, e para ilustrar isso bateu forte na coxa esquerda com a palma da mão direita cheia de anéis, como um anúncio para o que ia contar:
- Pois acredite. Antes de viajar para Miami, onde mora uma filha minha, eu estava num plantão bravo de sexta-feira quando o investigador trouxe um cara que tinha sido encontrado vendendo drogas. Mas como o rapaz havia se desfeito da muamba antes de entrar no camburão, não havia flagrante. Eu já ia liberar o tranqueira, depois de lhe fazer um sermão, quando ele se virou e vi que na camiseta estava estampada a imagem de um palhaço triste.
Usei uma conjunção conectiva para que ela continuasse, pois percebendo meu interesse fizera uma leve pausa a produzir suspense.
- E?!
A delegada ganhou força diante do meu monossílabo acompanhado de interrogação e exclamação. Respondeu com outra pergunta:
- Você sabe o que significa uma cara de palhaço com lágrimas escorrendo pelo rosto?
Assim o dizendo ela fazia gestos com a ponta dos indicadores na própria face, de maneira que quase cheguei a ver grossas lágrimas rolando na sua pele muito branca e oleosa. Movi a cabeça pra lá e pra cá, não, eu não sabia. Foi o suficiente para ela voltar a traduzir seu conhecimento à ignorante no assunto que se assumira como sua ouvinte:
- Olhe, quando você encontrar alguém usando um desenho desses, saiba que estará diante de um bandido, de um assassino da pior espécie, de alguém que matou um ou mais policiais. É a marca deles: assassinos de policial têm orgulho de usar isso.
Diante de meu espanto ela prosseguiu, cada vez mais animada com sua narrativa e o meu ar de incredulidade:
- Essa imagem de palhaço geralmente está tatuada em um dos braços ou nas costas. Por isso, quando eu interpelei o cara na minha delegacia, e ele disse que a camiseta era emprestada, ordenei que tirasse toda a roupa. Ele relutou; aí eu pedi ao investigador que lhe desse um reloginho.
- Na minha mente aquilo soou inusitado. Seria uma metáfora, o reloginho? A mulher prosseguiu:
- Um reloginho foi tiro e queda. Cinco minutos depois ele estava pelado na nossa frente. Com uma baita cara de palhaço triste tatuada nas costas. Fomos pesquisar mais a fundo e descobrimos então que ele havia assassinado, meses atrás, um delegado de cidade nordestina, colocando meu colega dentro de três pneus e tacando fogo. Era um foragido de outro estado, o marginal. Ganhei manchete no jornal local por ter botado as mãos no psicopata.
Perturbada com aquilo tudo que me era despejado sem que eu houvesse pedido, fixei-me mais uma vez naquela face, cujos olhos muito pretos combinavam com a cor das aves que estampavam seu vestidão largo. Perguntei:
- Mas o que é “reloginho?”
- Sabe não? Então vou te mostrar.
Ergueu-se, levantou os dois braços para cima, estalou no alto uma palmada que espocou tão forte que fez o velho, que voltara a cochilar, a se erguer assustado.
Como eu continuasse sem entender, explicou:
- Acho que esse método é empregado só lá na minha região. O investigador chega por trás e colocando toda a sua força dá um tabefe nos ouvidos do bandido. Ele perde o equilíbrio e fala até o que não sabe. Às vezes sai sangue pelo nariz; mas não deixa nenhuma marca para o desgraçado ir reclamar nas instâncias superiores.
Intuo que ela ia me contar mais histórias do tipo, quando do alto-falante veio a voz feminina avisando aos passageiros do voo para Manaus que deveriam se dirigir para outro portão. Levantou-se num pulo, pegou sua pasta 007 e uma bolsa de viagem com estampa falsa da LV onde havia sido colada uma bandeirinha do Brasil. Só disse “tchau” e foi correndo na direção oposta à qual chegara. Pouco depois eu embarquei para minha cidade. O velho ficou no banco. Tinha voltado a cair na sonolência, uma forma de se manter surdo às sandices dos que não sabem esperar calados.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.