A nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é escritora anglófona que se tornou conhecida tanto pela excelência da ficção como pelo ativismo feminista. Filha de professor e de secretária de Universidade, deixou seu país em 1996, aos 19 anos, para estudar nos Estados Unidos. Em Yale fez mestrado sobre estudos africanos. Nos seus escritos futuros, a vida dos migrantes, especialmente das mulheres nesta situação, sempre estará presente de alguma forma.
Ao primeiro romance, ‘Hibisco roxo’ (sobre os efeitos da colonização britânica na Nigéria), seguiram-se ‘Meio sol amarelo’ (com o tema da guerra fratricida de Biafra) e ‘Americanah’ (a respeito da experiência de nigerianos nos EUA). Este último foi eleito um dos dez melhores livros de 2013 pela New York Times Book Review. Vieram em seguida os contos de ‘No seu pescoço’, expondo imigração, identidade, racismo, choque cultural. Os ensaios ‘Sejamos todos feministas’, ‘Para educar crianças feministas’ e ‘O perigo da história única’ mostraram que, para além da escrita ficcional, Chimamanda havia se tornado respeitada também por textos que apontavam sua luta contra o preconceito estrutural, incentivador do apagamento da mulher como pessoa na sociedade africana.
‘Notas sobre o luto’ foi escrito após a morte do pai. ‘A contagem dos sonhos’, da morte da mãe, ocorrida pouco depois. Na página de rosto deste mais recente romance ela registra: ‘Em memória de minha linda e amada mãe Grace Ifeoma Adichie (née Odigwe). 29 de novembro de 1942- 1 de março de 2021.’ A homenagem aparece grafada também em igbo, gentílico de um dos maiores grupos étnicos da África e ao qual pertence a família da escritora: ‘Uwa m uwa ozo, i ga-abu nne m’.
Para quem vai ler o livro, talvez seja mais apropriado entender ‘contagem’ como ‘inventário’, vocábulo que traduziria melhor em português a essência da história: um levantamento das expectativas, desejos, conquistas e frustrações de quatro mulheres e de como elas lidam com seus sonhos quando têm de os confrontar com a realidade que se oferece. São elas: Chiamaka, Zikora, Omelogor e Kadiatou, africanas na faixa dos quarenta anos, com vivências diferentes relacionadas à maternidade, ao trabalho, a relacionamentos amorosos e propósitos de vida, à sexualidade.
Chiamaka é escritora de livros de viagem, vive nos Estados Unidos, mas se desloca com frequência para outros lugares. Também neste país Zikora exerce a advocacia com competência e brilho. Omelogor trabalha no setor financeiro na África Ocidental e às vezes transita por outros países. Kadiatou sobrevive como doméstica e cria sua filha na América.
Elas formam os pilares da narrativa maior que se consubstancia na soma de suas existências. Isso fica nítido pela forma como a obra é estruturada enquanto carpintaria. Nos quatro grandes capítulos titulados com seus nomes, os perfis são erguidos de maneira a lembrar contos, embora sem a linearidade clássica destes e com finais em aberto. Tem sido crítica recorrente a falta de amarração mais forte das partes.
Vejo de forma diferente. Acho que a autora conseguiu costurar com sutileza as sagas individuais e conferir à obra status de romance ao criar laços de amizade, parentesco, trabalho e até, às vezes, alguns antagonismos entre as personagens. Para expor os vínculos entre essas mulheres, que poucas vezes ocupam o mesmo espaço físico, usou na medida certa o artifício da comunicação on line, que as mantém conectadas e também sinaliza a herança dos novos tempos pós-Covid. Tal sinalização, que aparece já primeiros parágrafos, deixa entrever o estilo onde a escrita clara, bela e poderosa espelha a profundidade emocional e as percepções refinadas da autora sobre experiência feminina.
Ainda sob o aspecto da conexão das partes, considerei original a apresentação das personagens logo no início e os episódios consecutivos preenchendo vácuos abertos de propósito pela autora. Vozes e histórias chuleadas acabam passando em algum momento pela acidentada vida amorosa das mulheres, o que leva ao avanço do enredo. Como um todo, o romance tem na quinta parte seu epílogo com considerações de Chiamaka. O fim retoma o início, técnica muito usada em obras literárias contemporâneas.
Chiamaka é prima de Omelogor, ambas são amigas de Sikora, mas é aos poucos que o leitor é informado sobre isso. Nigerianas de classe média alta, envolvem-se com Kadiatou, guineense que trabalha na casa da primeira. Kadiatou é, sem dúvida, dentre as mulheres, a que mais toca emocionalmente o leitor por conta do seu sofrimento que começa na infância, das adversidades que precisa enfrentar ao tentar se integrar em outra cultura, da sua pungente humanidade exposta em minúcias. Na rica ‘Nota da autora’, no final da obra, Chimamanda explica a gênese de Kadiatou, nascida de uma história real que esteve nas manchetes dos mais importantes jornais norte-americanos e europeus em 2011. Na época, uma imigrante africana, Nafissatou Diallo, que trabalhava como camareira num hotel cinco estrelas de Nova York, foi parar no noticiário porque acusou um hóspede importante, Dominique Strauss-Khan, diretor do Fundo Monetário Internacional, de agressão sexual.
No adendo explicativo, a escritora lembra: “Acompanhei a história com atenção e até fascínio. Ela tocava em muitos pontos críticos da vida americana moderna: poder e agressão sexual; gênero, imigração e raça (...) E senti um leve impulso protetor, pois, apesar de Nafissatou Diallo ser diferente de mim em muitos aspectos, ela também era uma mulher da África Ocidental que morava nos Estados Unidos, e, portanto, familiar, intuitivamente cognoscível, e surgiram em mim os sentimentos de uma irmã.” Encerra os comentários acrescentando: “Minha mãe, acho, teria gostado de Kadiatou. Eu a imagino lendo este romance e dizendo, com uma espécie de resignação e empatia: ‘Nwanyi ibe m. Mulher como eu.” No rol do quarteto de mulheres (três delas financeiramente independentes e muito glamurosas) que movem o enredo, a humilde Kadiatou tornou-se ‘a filha preferida’ da autora, que confirmou o afeto literário à jornalista Sabrina Legramandi, em entrevista num evento da última Bienal, com mediação da atriz Taís Araújo.
Na ocasião, ainda falando sobre a obra, Chimamanda afirmou que “ler ficção é ter contato com esse tipo de história capaz de nos levar para fora do próprio umbigo’. Também citou os desafios com a leitura no Brasil e ao redor do mundo; e fez um alerta: ‘Os homens deveriam ler mais. A maioria dos problemas seriam resolvidos se os homens lessem mais”. É um conselho que deveria ser levado em conta. Entrar no universo intensamente feminino de ‘A contagem dos sonhos’ pode levar o leitor a descobrir não só aspectos da feminilidade que lhe escape nos seus relacionamentos amorosos; também é capaz de lhe tornar mais evidentes as maneiras como a sociedade, ainda muito machista na maior parte das culturas, vê, julga e condena as mulheres. E como nós, mulheres, ainda temos muito a batalhar, avançar e conquistar em termos de igualdade, autonomia, independência.
Homens, leiam Chimamanda!
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.