Qualquer forma de amor é entrega. Quem ama desapega, controlar pode levar à insanidades. Amar também é perder-se, esvaziar-se do já conhecido sabendo não haver restituição. Experimentar certo vazio preenchido com sentimento novo. Amar não exige condições, afeto não é produto que se compra: é troca humana em breve momento. Uma janela compartilhada para o mundo. Amar pode ser perder-se um pouco na história do outro, viver por um momento a narrativa de vida alheia. Esse conto foi originalmente publicado no meu livro Quando permitir a maré, pela Editora Patuá com apoio da Lei Paulo Gustavo. É com afeto, talvez amor, que lhe entrego a difícil e breve história da paixão de Ana.
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Não é certo nem justo Ana morrer antes dos 18, aos 12 fazia planos e lia tudo que dava na telha e ninguém dizia o que podia saber. Os professores de Ana ensinavam que escrever é compor arranjos, que todo buque de flor tem espinhos, e ela acreditava neles. Acreditava também nos seu pais que acreditavam nos padres, mas percebia a diferença: só os padres mastigavam a hóstia consagrada na hora da comunhão.
Ana, então, já padecia de devoção ressentida. Perguntava distraída se sentiria o sangue de Cristo caso mordesse o corpo esquartejado recomposto no glúten. Bate na boca e peça perdão, e limpa esse grão de amido sagrado na sua boca suja. Convenhamos, a vida não é certa como uma linha reta nem justa. A puberdade encontrou a menina epilética. Os médicos não souberam afirmar, e não há registro na literatura médica, se o sistema nervoso em curto atrofiou suas pernas resultando em paralisia.
Do sonambulismo à distrofia muscular degenerativa foi um passo, mas nada pode comprovar a ligação entre os estados fluidos da intuição aos músculos rígidos do corpo sem função. Podia contar isso diferente, mas sem efeito. Certamente quem analisa também julga as escolhas que o outro faz; antes, vá viver a vida alheia e volte com moral mais justa. Nesse isolamento que não é exatamente uma escolha, Ana escreveu muitas histórias em seu diário. Ávida gerou e pariu famílias de faunos, ninfas, duendes, mulas sem cabeça com chifres enormes e outras bestas com a aparência de pessoas normais como professores, pais e padres.
Ela dispôs na vastidão do silêncio o barulho constante morador da sua mente. Precisava apaixonar-se pela vida que nunca teria. Para o rapaz da farmácia escreveu: ele tem na forma o apelo irresistível de um deus solar que habita alturas e na alma a deformação típica que a pressão atmosférica confere aos grandes peixes deformados que vivem com pouquíssima luz no fundo lamaçal dos rios. Mas não chegou a entregar, Ana morre hoje sem saber do amor correspondências. Enquanto Ana morre, busquemos encanto na imperfeição.
Ouvi dizer que deus não cria linha reta, nos caminhos tortos proporção e harmonia são bens gastos em nossos dias. O copo está vazio, Ana deve morrer. Tem a dignidade astuta que rompe os lacres do inconsciente quando resolve o valor intrínseco do inacabado. Sua a voz imortal justifica o desapego sereno criteriosamente interrompido, fiemos ardil cínico para imitar algum realismo.
Não vamos assistir a cena, sabemos que o efeito da droga ingerida é de vinte minutos. Se havemos de colher o que plantamos, Ana terá fim anômalo a sua invisibilidade. Passara despercebida em toda parte pelos homens ocupados nos bares e por suas mulheres nos labores. Arrastara-se inútil da mesa da cozinha para quarto onde se despediu bilhete porque precisa ser ouvida depois da morte.
A vida banalizada, a morte não vale nada. Hoje morrerão prostitutas e donas de casa sem notícia, também uma senadora de um país que desconhecia no mapa. Um bispo e um dizimista de uma igreja, universal por moda e ocasião. Exemplos, para que fiquemos nos extremos do que se considera no vulgar das consciências o santo e o profano, porque entre uma coisa e outra estamos. Diferente desses casos, o que deve incomodar é o fato de Ana ter escolhido o momento e o modo de chegar ao fim da sua história quando a maioria de nós se entrega ao deus dará: são 6 horas 20 minutos do 1o dia inútil da semana.
Ontem à tarde, Ana foi à farmácia da esquina pilotando sua cadeira, mas enfrentou seus limites (não levou o bilhete de paixão recolhida). E voltou com o remédio que promete prolongar a espera do portador de distrofia muscular e outros males congênitos. O conteúdo da ampola no copo d’água cheio até o meio a mucosa do estômago absorve agora. Depois da sua morte a vida continuará, todo movimento inútil vira folha. A mãe de Ana, Dona Veridiana, deve encontrá-la como Polônio à Ofélia: como quem sonha.
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Dona Veridiana saiu bem cedo para a “mercearia” sem saber o que contamos até aqui. A “mersearia” é o único estabelecimento que abastece os moradores do bairro. Na fachada se lê “mersearia do galego” escrito com S de supermercado, de simples e de duradouro. Mesmo não grafado no verbete “duradouro”, o simulacro permite visualizar os contornos da letra S na superfície da tinta, nas mitologias que associam à imagem da serpente a ideia de infinito e eternidade, ainda que provavelmente já soubessem os antigos que matéria alguma no universo tenha a mesma durabilidade.
É o caso da mesma letra em distinto, destino e destituído na canção Filosofia de Noel Rosa que Dona Veridiana canta enquanto desce a ladeira. Que diferença pode fazer um ‘S’? Este na palavra “mersearia” é fruto da disputa pelo domínio de territórios do léxico entre o velho proprietário galaico-português imigrante irritado e seu neto convicto e impertinente que sempre o corrige. Que diferença pode fazer simples “S” a mais ao distinto destino destituído de Dona Veridiana que desce a ladeira para comprar café? Não me incomodo que você me diga que a sociedade é minha inimiga, pois cantando neste mundo vivo escravo do meu samba muito embora vagabundo. Quanto a você da aristocracia que tem dinheiro, mas não compra alegria, há de viver eternamente sendo escravo desta gente que cultiva hipocrisia.
Os vizinhos que madrugam podem ouvi-la. Sem pressa logo de volta com a garrafa de leite magro numa das mãos e pães sem esperança na outra. Se em dia claro, o contorno do morro arde e o esplendor das pétalas roxas das tumbérgias dá-lhe vontade de si plantar na encosta e vê a favela como turista, chega a ficar feliz de lembrar que domingo levará cigarros para o marido na penitenciária onde cumpre pena por tráfico. Preciso terminar o barraco. Se tivéssemos imaginação poderíamos dizer alguma coisa sobre a agonia de Ana nesse momento, mas parece que por uma questão semântica é mais importante que a vida nos obrigue sem comunicabilidade.
Dona Veridiana avistamos a autovia. O trânsito lento serpenteia o morro bocejando carbono. Nuvens carregadas continuam o que a noite encobriu sem remissão. Vai chover. Pesando as contas agora, Dona Veridiana arrepende-se de pagar a conta de luz ainda no prazo dado pela companhia, vai comprar seu café sem dinheiro. Compro do português faz tempo, podemos ouvi-la, meio quilo é só meio. Se ela reza, isso não é pai nosso.
Chegamos à “mersearia”, entreposto comercial que abastece os últimos bairros da periferia. Dependendo do horário em que o freguês chegue é possível comprar de tudo. Desde produtos sobre os quais incidem impostos e lucros para o governo e aqueles que dispensam nota fiscal por serem considerados ilegais. Mesmo que a circulação constante movimente muito a receita desfiada, talvez chegue o dia em que o governo crie estratégias para declarar contas claras do crime.
Rapé carne em lata papel de carta seda colomy arame farpado brinquedos de plástico de toda cor doces anil sabão em pedra sabão em pó água de lavadeira tijolos de demolição pregos refrigerante açúcar são dos itens mais procurados, e ficam nas prateleiras da frente. Café é um item caro se por meio quilo Dona Veridiana pagará o dobro do que vale no mercado ao galego português.
Antes de entrar, Dona Veridiana dá passagem para um homem que pergunta onde fica o edifício Firenze reclamando das novas tecnologias de comunicação, do tempo, diz que seu celular virou pai-de-santo e que só recebe ligações. Ninguém ri da estranha piada, pode chover a qualquer momento. Não sei onde fica o Firenze. Por onde se chega? Quanto tempo leva? Não sei, aquele que tem rachaduras é o prédio da Receita Federal.
Chegar ao destino é mesmo esquecer um tanto. Um rapaz uniformizado atravessa a rua ouvindo música num aparelho minúsculo enfiado nos ouvidos. Vem em nossa direção. No uniforme duas palavras unidas se opõem no sentido e se diferem na cor: em vermelho DROGA, em azul VIDA. Dona Veridiana parece irritada. O céu desaba. O português diz um sim tingido de talvez, “temos café”.
O funcionário da DROGAVIDA estende a nota para a mãe de Ana e diz que a moça esqueceu de assinar o recibo quando esteve na farmácia. A vida anda cara, rapaz. Pior é não estar vivo, Dona. Naquela cadeira não é vida. Dona Veridiana assina o recibo arrematando o diálogo arrependida do que dissera. A ventania aguarda o momento de varrer o morro.
O funcionário da farmácia é aquele tem na forma o apelo irresistível de um deus solar que habita alturas e na alma a deformação típica que a pressão atmosférica confere aos grandes peixes deformados que vivem com pouquíssima luz no fundo lamaçal dos rios, sai do nosso campo de visão a tempo de ouvimos no seu timbre de voz a preocupação com o procedimento adequado no uso do medicamento. Mais de vinte gotas o remédio é veneno, a gente sempre explica a bula porque quase ninguém lê as letras miúdas.
Baltazar Gonçalves é formado em História pela UNESP e membro da Academia Francana de Letras.