06 de dezembro de 2025
NOSSAS LETRAS

Pedro e Paulo

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 5 min

Bem comum é encontrar nas listas de títulos essenciais citados por escritores a presença da Bíblia, por conta de narrativas interessantes e temas universais que, contemplando diferentes épocas e contextos, exibem paraísos e infernos, disputas tribais e familiares, julgamentos radicais, conflitos morais, ciúme e inveja, mas também casos de amor, perdão e esperança. As histórias contidas nos Evangelhos ressoam na alma de artistas de diferentes culturas e tempos, sejam religiosos ou não. O estilo sobejante em metáforas, símbolos e imagens; a beleza poética de certas passagens; a força retórica que imanta muitas falas estimulam autores na criação de obras que dialogam com experiências e anseios profundos da humanidade, transcendendo barreiras culturais e religiosas. 

Decorridos milênios, assuntos como redenção, sacrifício, fé, conflito, fraternidade, restauro continuam relevantes e fonte de inspiração para a arte pictórica, a música, a dramaturgia e a literatura- da ficção à poesia. Que se lembre, de passagem, no caso da língua portuguesa, o nosso Machado de Assis e seu ‘Esaú e Jacó’, atualização no século XIX de uma história contida no Velho Testamento, e José Saramago, com ‘O Evangelho segundo Jesus Cristo’, mirando do século XX o nascimento, a vida e a morte do protagonista no alvorecer da Era Comum, sob ótica histórica e muito humana.

A longa tradição ocidental de adaptação de histórias bíblicas demonstra a capacidade de se manterem relevantes para novas gerações. O gênero cinematográfico, por exemplo, desde que foi inventado acolheu dezenas desses relatos. O mais recente sucesso na área é ‘The Chosen’, série sobre a vida de Jesus. Ambientada principalmente na Judeia e na Galileia, o ponto de vista varia segundo a perspectiva das pessoas que conheceram, seguiram ou interagiram de alguma forma com Cristo.

Hoje destaco, por conta da data, ‘Pedro e Paulo’, também série, com Anthony Hopkins e Robert Foxworth nos papéis-título. São personagens que representam figuras centrais nos textos religiosos que sustentam o Cristianismo. Rodada em Rodes, na Grécia, e detentora de alguns prêmios, mostra a sobrevivência do movimento cristão nos primeiros anos, quando opositores passaram a atacar a nova religião de forma cruel. Pedro e Paulo, que se conheceram depois da morte do Cristo, lutam para expandir a fé e suas jornadas avançam para fora da Judeia, no intuito de ‘proclamar a graça de Deus no perdão dos pecados por meio de Cristo’.  Ora juntos, ora separados, sobrevivem a prisões e torturas e pagam preço alto pela devoção: Pedro é crucificado e Paulo, decapitado.

Muito já se escreveu sobre eles, sobretudo na literatura de cordel. Em nosso país o primeiro tem forte apelo popular no conjunto das festas juninas que movimentam a fé e a economia, principalmente no Nordeste. Última delas, a de São Pedro fecha neste 29 a tríade que se completa com Antônio e João. Sempre achei instigante o fato de que a festa litúrgica que une Pedro e Paulo, martirizados e mortos segundo a tradição no mesmo dia, exclui o segundo da alegria dos festejos populares. Talvez a biografia forneça pistas que expliquem alguma coisa.  Ou não. Vejamos.

Paulo era judeu. Nascido em Tarso, possuía cidadania romana. Criado em Jerusalém, foi aluno do mais ilustre rabino de sua época, Gamaliel. Vendo no Cristianismo grande ameaça, alistou-se no time de perseguidores de cristãos. Seu processo de conversão aconteceu de forma súbita, a caminho de Damasco, e a experiência transformadora, que o levou a mudar o nome de Saulo para Paulo, é relatada em descrição de grande beleza plástica.

Pedro também era judeu, mas seu perfil distava anos-luz do de Paulo. Lançava redes ao mar com o irmão André quando Jesus o viu e o convidou a segui-lo: ‘Venha ser pescador de homens”. Ele foi, mas, impulsivo, às vezes contraditava o Mestre; medroso, negou ser seu discípulo na noite em que este foi capturado pelos soldados; amoroso, intercedeu pela cura de sua sogra. A ele, até então Simão, Jesus chamou Pedra, com isso lhe conferindo status de construtor da igreja. Como tal, será a fonte do primeiro Evangelho, escrito por Marcos.

Tão opostos na formação pessoal, um erudito oriundo da elite, racional e introspectivo, outro sobrevivendo como pescador, espontâneo e emotivo, empreenderam ambos a divulgação de um único credo que os levou além da Cesareia. Eram seres diversos que se complementaram, nos mostra a minissérie citada, concluída no final dos anos 80. Como obra de arte ela antecipa algo que se tornaria tema recorrente nos discursos pós-modernos: a necessidade de ampliar a consciência humana em relação à diversidade e à alteridade. A vivência fértil dos dois homens mostra, no nível da história contada na série, as possibilidades que só se concretizam quando existe uma verdadeira relação entre humanos que aceitam o diverso, a originalidade, o desconhecido.

Não dá para ignorar que estamos vivendo em grande parte do planeta situações de muita intolerância. A celebração de hoje em nosso país, onde ainda prevalece o sentimento religioso na maioria da população, é oportunidade para refletir sobre esse sentido da “diferença”, seja no interior de cada comunidade religiosa, seja na convivência social. Pedro e Paulo, personagens bíblicos ou cinematográficos, podem nos conduzir ao reconhecimento da beleza de um dom que consiste em alimentar uma relação mútua e enriquecedora em cada encontro, apesar, ou por conta, das diferenças.

Humanos, somos seres em caminho, ansiosos por sentido, buscadores da verdade e habitados por uma mesma essência. E, sim. Em cada um de nós pulsam um Pedro e um Paulo cuja interação deve ser tentada continuamente.

 

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.