"Quem luta contra monstros deve ter o cuidado de não se tornar um deles"
Nietzsche, filósofo e filólogo alemão
Não tinha muito como ser diferente, nem menos lamentável. Quando aqueles que têm o poder de decidir ficam encastelados, ignoram a opinião pública e agem sem levar em conta os impactos de suas ações naqueles que são afetados por elas, nunca o desfecho é bom. Sobram exemplos na história do mundo de episódios assim, da Revolução Francesa à Primavera Árabe, para ficar em apenas dois.
Neste último sábado, 29, a praça Nossa Senhora da Conceição, em Franca, foi palco de uma versão “mini pocket-soft” destes eventos, quando servidores públicos que protestavam contra o reajuste salarial concedido pela prefeitura cruzaram com a vereadora Lindsay Cardoso (PP). O que era uma manifestação legítima rapidamente se transformou num constrangimento inaceitável, com direito a vereadora fugindo do grupo enquanto era perseguida e acuada como se fosse uma criminosa, em meio a ofensas e quase-agressão física. Triste, para dizer o mínimo.
O “quiproquó” na praça é resultado direto da forma com que agiram a Prefeitura e a Câmara de Franca na sempre complexa negociação do reajuste dos servidores públicos municipais de Franca, somada à falta de mínimo senso de quem confunde manifestação com agressão.
O problema começou quando a prefeitura se recusou a negociar e, contando com a inexperiência flagrante de alguns vereadores, impuseram juntos o reajuste limitado à reposição inflacionária, à revelia da decisão da assembleia da categoria, na votação do projeto de lei que transformaria em realidade esta receita indigesta.
Ainda tiveram juntos, Prefeitura e Câmara, a “brilhante” ideia, gestada sabe-se lá por quantas mentes tão míopes quanto perturbadas, de aproveitar para conceder a si mesmos um novo benefício: cartão-alimentação para o prefeito, vice-prefeito e secretários municipais (no valor mensal de R$ 1.036,00 para cada um) e também para os vereadores (agraciados com R$ 1.900,00 cada todo mês). Tudo sem nenhuma discussão prévia com a população.
Assim, os mesmos vereadores que disseram que tudo que Franca podia fazer pelos servidores era conceder um aumento de 4,87% (exatamente a inflação do período), mesmo depois de rejeitar todas as tentativas de melhorar um pouquinho que fosse o índice, resolveram aprovar, na mesma sessão, benefícios para seus integrantes do primeiro escalão.
É óbvio que qualquer aumento de R$ 50 para os servidores (que são mais de cinco mil) tem um impacto muito maior do que o benefício de R$ 1.036 aprovado para pouco mais de 10 pessoas na prefeitura e de R$ 1.900 para os 15 vereadores. Ninguém é burro e a conta é óbvia. Mas não se trata de matemática e, sim, de psicologia. Não é planilha de Excel, mas ausência de respeito. Não é questão de ser o benefício justo ou injusto, mas de mínima conveniência. Ninguém engole fácil uma humilhação dessas.
Os ânimos, que já estavam exaltados, explodiram. O “estado de greve” da categoria ganhou força, com paralisações que começam a atingir a população. Os vereadores, como era óbvio que aconteceria, se tornaram os alvos preferenciais nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp. É amargo, mas tudo parte do jogo democrático.
O que não faz parte é o que houve na manhã de sábado na praça Nossa Senhora da Conceição, durante o protesto que reuniu algumas dezenas de servidores. Gritar palavras de ordem, exigir respeito, criticar o prefeito e os vereadores é atitude legítima. Fazer o que fizeram com a vereadora Lindsay Cardoso passa longe disso. É inaceitável.
Há que se considerar que, antes de vereadora, Lindsay Cardoso é uma cidadã, com os mesmos direitos e responsabilidades que pesam sobre qualquer um de nós. Ela estava na praça, numa feira de animais para adoção, o que é direito dela. Lindsay não estava xingando ninguém, ofendendo quem quer que seja e muito menos transgredindo alguma lei.
Subitamente, ela foi cercada pelos manifestantes, que passaram a “exigir” respostas dela. Não foi exatamente uma cobrança diplomática e muito menos um convite ao diálogo. Em nenhum instante foi uma conversa propositiva, ainda que dura, mas sim um ataque. A vereadora, cercada, se assustou e correu em busca de abrigo, no que foi perseguida pela turba enfurecida. Numa das cenas mais tristes da política francana dos últimos tempos, ela literalmente se escondeu numa loja e só conseguiu sair de lá numa viatura da Guarda Municipal.
Nas muitas discussões que se sucederam ao ocorrido, sobraram “explicações” e justificativas, a maior parte delas estapafúrdias e desarrazoadas. Há quem diga que o local era público, ela é vereadora e deve explicações, como se por ter sido eleita tivesse renunciado ao direito de existir como pessoa. Outros apontam que como “eleita” ela é paga com dinheiro público, fruto da arrecadação de impostos que sai do bolso do contribuinte e, por isso, em última instância, ela seria “empregada” deles, que poderiam exigir explicações a qualquer hora. É argumento tão válido quanto sustentar que os servidores, que também são pagos com dinheiro púbico, poderiam ser cobrados pelas pessoas até numa pizzaria, por exemplo. Não cola, e muito menos é justo. Nem para os servidores, nem para a vereadora.
É preciso urgentemente parar com esta ladainha, crescente no Brasil, de imaginar que alguém, por ter sido eleito, é um legítimo saco de pancadas obrigado a ouvir toda e qualquer ofensa, em qualquer lugar, sob qualquer justificativa. Há limites, para tudo.
Cobrar a vereadora Lindsay Cardoso, e todos os seus colegas que votaram no mesmo sentido, é direito do Sindicato do Servidores, de seus associados e de quem se sentiu atingido. Que façam isso no plenário da Câmara, nas redes sociais, numa reunião, com a devida firmeza mas sem desrespeitos de qualquer espécie. E que nos momentos privados como o passeio na praça da vereadora, ou a ida um restaurante, a um evento, de um outro vereador, do prefeito, ou de um secretário municipal, haja respeito e consideração, sob risco de os manifestantes perderem o apoio que a causa merece.
Sobre o reajuste dos servidores propriamente dito, muitas lições precisam ser assimiladas. A democracia é um sistema organizado a partir dos pesos e contrapesos dos poderes constituídos, exatamente para evitar abusos e arbítrios. Essa desculpa de alguns vereadores de que votaram para “impedir” que a categoria “perdesse” benefícios como faltas abonadas e o cartão-alimentação é conversa para boi dormir. Considerar como válidos tais argumentos é o mesmo que dizer que jamais haverá negociação, porque basta o prefeito, quem quer que seja ele, não arredar pé da proposta inicial, esperar meados de março e então enviar para a Câmara o projeto de reajuste sem acordo. Verá aprovado exatamente o que quer. Outras ideias, como incluir previsão de orçamento na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) igualmente não resolvem nada.
Se os vereadores discordam do que o prefeito propõe, que votem “não”. Discutam com os servidores, apresentem as opções e os riscos, cobrem do presidente do Sindicato a assertividade e a clareza que tantas vezes lhes faltam e manifestem no plenário sua concordância ou discordância com o projeto em discussão. Sem inocência, sem confusões, de acordo com sua consciência e valores, e sem desculpas. O resto, é só tentar apagar fogo com gasolina. Serve para coisa alguma além de piorar o incêndio.
Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias.