29 de dezembro de 2024
ARTIGO

Dificuldade para compreender a mentalidade medieval


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Entre nós, atualmente, a guerra parece configurar não apenas um dos cavaleiros do Apocalipse, mas o pior deles, o mal supremo que acima de tudo se deve temer e evitar a todo transe. Já entre os medievais, a guerra parecia algo natural; sua mentalidade se caracterizava pela belicosidade; ainda atavicamente ligados aos seus ancestrais bárbaros, eles se diferenciavam muito dos homens de nosso tempo. A naturalidade com que viam a guerra parece incompreensível para nós, que herdamos de nossos pais e avós a recordação traumática das duas guerras mundiais e ainda embalamos o sonho, infelizmente utópico, de um mundo justo e pacífico.

Os medievais eram tão afeitos à guerra que somente com grande esforço a Igreja conseguiu, pela imposição gradual das “Tréguas de Deus”, minorar e suavizar as atividades bélicas entre cristãos. A instituição da Cavalaria, com seu código ético de fazer a guerra, e as próprias Cruzadas, em larga medida foram a canalização, para um fim de cunho religioso, do belicismo presente na mentalidade coeva.

A visão da guerra como algo natural à condição humana não existia apenas na Europa Cristã, mas era compartilhada pelos maometanos. Para estes, a guerra santa não era apenas uma contingência da vida imposta pelas circunstâncias, mas era o meio mais fácil e seguro para alcançar o paraíso eterno: “Combatei na senda de Allah contra os que compram a vida mundana com a última! Àqueles que combatem na senda de Allah, quer estejam mortos, quer estejam vitoriosos, será concedida uma enorme recompensa.” (Corão, 4, 73-79)

Entre os cristãos, era comum lembrar que “a vida do homem sobre a terra é uma guerra”, (Jó 7,1). São frequentes as referências à vida militar no Antigo Testamento, como também nos Evangelhos, onde se encontram várias passagens, algumas explícitas outras metafóricas, para significar, por meio de imagens da vida militar, as lutas e os combates de caráter espiritual. “O Reino de Deus adquire-se pela força, são os violentos que o conquistam” (Mt 11, 12), ensinou Jesus Cristo, que também foi categórico nesta outra passagem: “Não julgueis que vim trazer a paz à Terra; não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10, 34).
Santo Agostinho, na Cidade de Deus, aponta a guerra como o meio habitual com que Deus pune os pecados dos povos. Não tendo vida eterna, as nações não podem ser premiadas ou punidas na eternidade; por isso, é nesta terra que os pecados e os atos de virtude coletivos, dos povos, recebem, também coletivamente, sua paga. Os atos de virtude das nações são premiados pela Providência, segundo o pensamento de Santo Agostinho, com prolongados períodos de paz e prosperidade material, com isenção de pestes, calamidades públicas ou flagelos. Já os pecados nacionais são punidos pelas guerras, assim como por calamidades que atingem a coletividade: desarranjos climáticos, más colheitas, epidemias etc.

Assim sendo, a existência da guerra, na ótica cristã medieval, se inseria dentro do próprio plano divino. Essa ideia, aliás, encontrava embasamento no Antigo Testamento, no qual a guerra santa dos bons contra os maus estava amplamente documentada e servia de contínuo modelo para os guerreiros cristãos. Os filisteus, tradicionais e perpétuos inimigos do povo hebreu, por um paralelismo fácil de compreender eram assimilados aos maometanos, também tradicionais e perpétuos inimigos da Cristandade medieval.

A tal ponto a guerra santa era considerada como parte do ideal cristão de santidade que a Igreja chegou a consagrá-la instituindo ordens religiosas militares. A regra dos Templários foi escrita com a colaboração de São Bernardo de Claraval, e sua fundamentação teológica seria elaborada por São Tomás de Aquino. Entre os maometanos dava-se, em sentido oposto, precisamente o mesmo.

Compreende-se, pois, que para os homens do século XIII, cristãos ou muçulmanos, parecesse natural a guerra religiosa e, mais até do que isso, parecesse algo virtuoso e recomendável. Nada mais anacrônico do que procurar, nos homens daquele tempo, os modernos conceitos de tolerância religiosa e de liberdade de consciência. Nada mais injusto do que condená-los a priori por não possuírem tais conceitos e por não viverem na sua conformidade.