Eva Heller, psicóloga, socióloga e ficcionista de origem alemã, é autora de livro interessante sobre a relação das cores com os sentimentos humanos. Em ‘A Psicologia das Cores’, lançado no Brasil em 2002, ela mostra como as duas coisas não se combinam por acaso, já que entre ambas, emoções e cores, não vigem apenas questões de gosto, mas sobretudo experiências universais profundamente enraizadas na nossa linguagem e no nosso pensamento. Para Heller, não existe cor sem significado: todas afetam cada indivíduo de acordo com o contexto em que estão inseridas.
Com base em pesquisas realizadas em diferentes partes do mundo, Heller afirma no seu livro que azul é a cor predileta da maioria das pessoas ao redor do mundo e está relacionada a sentimentos bons não incluídos no domínio da paixão. Sugere que esse fenômeno se dá devido ao inconsciente coletivo herdado através de um compilado de lembranças, pensamentos e sentimentos compartilhados por toda a humanidade. Segundo seu ponto de vista, o azul relaciona-se às virtudes intelectuais, empatia, harmonia, calma, confiança e, com perdão à incidência das rimas, amizade, espiritualidade, eternidade, fidelidade, serenidade. Pode ser que a experiência humana com essa cor esteja intimamente associada ao céu- divino, calmo, seguro e inspirador; e ao mar - infinito em sua sugestão de algo que dura para sempre.
Não é portanto gratuito que nomes estrelados de nossas letras tenham levado o azul para seus textos em algum momento da escrita. Clarice Lispector questiona em uma crônica dos anos 60: “Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia?’ Cecília Meirelles afirma em seu mais conhecido poema: “Minhas mãos ainda estão molhadas/ do azul das ondas entreabertas/ e a cor que escorre de meus dedos/ colore as areias desertas.” Outro poeta, Manoel de Barros, revela: “Para encontrar o azul/eu uso pássaros”. Ficcionista extraordinário, Guimarães Rosa pergunta em uma das histórias de Tutameia: “Para onde nos atrai o azul?”
Perpétua Amorim, grande poeta mineira da Franca, autora do recém-lançado livro ‘Falas Azuis’, responde ao autor de ‘Grande Sertão- Veredas’ em ‘Sombras azuis sobre a cidade que calça letras’: ‘Quando esse céu derrama sobre mim o seu azul, qualquer palavra dita perde o som. Qualquer sinal entre o céu e a terra é azul. É o azul do céu francano que você precisa conhecer’. Resgata Cecília Meirelles em ‘Parque Fernando Costa’: ‘Meus olhos de poeta precisam de consolo, minha alma inquieta desvia do caminho, deixa de olhar ao redor na tentativa de encontrar uma brecha, um cantinho onde eu possa equilibrar meus sentimentos e sentir parte da natureza esparramada na imensidão do parque.’ Evoca a simplicidade sofisticada do poeta cuiabano em ‘Cumplicidade do Tempo’: ‘As maçãs, rubras de vergonha, rolavam pela sala de jantar, à procura de um esconderijo seguro. Uma maçãzinha miúda atravessou a varanda e foi esconder-se debaixo da máquina de lavar, bem no cantinho da área de serviço.’ Mergulha fundo como Clarice em ‘Entre cruzes e montanhas’: ‘Em devaneios múltiplos, cintilam os temores e as crenças descabidas que limitavam as minhas vontades e desavenças com o sagrado. O medo concebido em mistério indicava prismas laboriosos e infernais. Tornei-me pecadora em minha santa inocência.”
Ao receber das mãos da autora um exemplar autografado, lançado no último novembro também na Academia Francana de Letras, meu olhar se demorou no título, atraído pelo seu caráter sinestésico. E tão logo comecei a folhear ‘Falas Azuis’, fui seduzida pela sensibilidade da autora ao conferir cor às falas que são, afinal, os textos que compõem a obra: crônicas curtas, alguns contos, tudo entranhado por uma poesia que envolve e comove o leitor. Depois de ter percorrido as 93 páginas que compõem a obra, fiquei impressionada pelos azuis reais e metafóricos nela distribuídos; também pela condição da autora de captar o que há de mais genuíno no ser humano, de se manter fiel ao estilo peculiar que caracteriza sua escrita, de se deixar mobilizar por miríade de emoções a serem compartilhadas com seus leitores e leitoras. Concluí que a escritora tanto olha para dentro de si como ao seu redor, perfilando-se como ser humano desde muito cedo seduzido pela força da palavra, especialmente a literária. É o que se depreende em ‘Na terra nasce a palavra, nos olhos o desejo’:
‘Sou dominada pela força da palavra, aprendi a usá-las pelas mãos do meu pai, pelo desejo de plantar e ver crescer na terra bruta cada sílaba musicalmente soletrada. Meu pai pescava estrelas com o anzol do pensamento, riscava com um graveto a terra seca fazendo mágica com as palavras. Com elas eu descobria o sentido de ser e estar inserida na história(...) Por muito tempo os cadernos foram delicadamente apagados, para serem usados novamente, recriando novas palavras num horizonte desigual, na esperança de contar novas histórias’.
Esse ‘sentido de ser e estar inserida na história’ define tanto a poeta quanto sua poesia, tanto a escritora como a cidadã. Olhar marcado por muitos afetos, por acolhimento e generosidade, Perpétua Amorim traduz anseios e sugere práticas, uma delas a inclusão. A isso chamamos coerência. Assim, atenta ao fato de que uma das confreiras na AFL, Maria Conceição Castro da Silva, autora de ‘Marcas’ (aqui resenhado há um mês), demonstrava sua dificuldade para encontrar obras de ficção em Braille, Perpétua Amorim, atual presidente da AFL, batalhou para que a editora Telucazu, que chancela “Falas Azuis”, produzisse pelo menos quinze exemplares para deficientes visuais.
A entrega desses volumes aconteceu na última reunião do ano da AFL. Para prestigiar o evento compareceram amigos de Maria Conceição, vinculados como ela à Associação Francana de Instrução e Trabalho para Cegos. Alguns deles, como o advogado Brás Porfírio Siqueira, manifestaram-se em apreço a Perpétua Amorim e acadêmicos presentes. Houve também apresentação musical. Os escritores Luiz Cruz de Oliveira e Regina Bastianini declamaram sonetos de Vinícius de Moraes e Raimundo Correia, respectivamente.
Perpétua Amorim fechou o ano da AFL com chave de ouro, um chavão ao qual às vezes precisamos recorrer na falta de outro que consiga expressar de forma tão perfeita um encerramento precioso e brilhante. Na tarde azul, de falas azuis, tudo esteve bonito, alegre, sereno, esperançoso. Sem que o tivéssemos planejado, vivenciamos naquela segunda sexta-feira de dezembro um expressivo momento de Natal.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.