Faz exatamente um mês que ‘Ainda estou aqui’ entrou em cartaz nos cinemas do Brasil. Quer dizer, na maioria deles, pois há cidades pequenas que ficaram órfãs da exibição. É uma pena. Porque estamos diante de um filme ao qual todos os brasileiros deveriam assistir por seu enredo baseado em fatos, roteiro coerente, elenco luminoso, trilha musical metafórica, direção de mestre. Mas principalmente porque desvela a escuridão que se abateu sobre o País entre 1964 e 1981. Foram 21 anos de ditadura: é perigoso esquecer, minimizar, fazer de conta que não existiu; é indecente passar pano como desejam ainda hoje os ávidos por ressuscitar tempos de treva.
O enredo nasce do livro de Marcelo Rubens Paiva sobre a trajetória de sua mãe Eunice em busca de respostas ao desaparecimento do marido Rubens, pai do escritor. O relato tem início no ano de 1971, quando o Brasil assistia ao endurecimento da ditadura militar sob a mão de chumbo do general Emílio Garrastazu Medici. No Rio de Janeiro, a família Paiva, composta por Rubens, Eunice e cinco filhos, vive tranquila num sobrado à beira-mar. Bem-humorados, estão sempre em movimento e gostam de se cercar de amigos. Um dia, Rubens é levado a uma delegacia por militares à paisana que invadem sua casa. Nunca mais será visto. Eunice é obrigada a se reinventar e traçar novos rumos para si e os filhos, enquanto busca a verdade a respeito do sumiço do marido, um engenheiro que eleito deputado em 1964 tinha sido cassado pelo regime militar em 1966.
Dirigido por Walter Salles, entre os maiores cineastas do país, o filme se constrói numa linearidade que avança por quatro décadas, embora se detenha mais sobre os capítulos da prisão de Paiva, Eunice e a filha, e o subsequente trauma familiar com a angustiante falta de notícias. A dinâmica imposta pelo diretor (que adolescente frequentou a casa dos Paiva) confere ritmo à trama estruturada em três episódios, mantendo a força da tragédia do sequestro e da ausência de informação sobre o sequestrado.
Graças a um trabalho sutil que conjuga técnica cinematográfica e desempenho extraordinário dos atores, o espectador é capturado desde o preâmbulo e colocado junto aos personagens, como observador muito próximo dos acontecimentos. Assim, ele se vê dentro da sala povoada de gente alegre e musical; na cozinha de mesa posta com os pratos Colorex então em moda; na garagem onde a empregada e as crianças dão banho no cachorro; nas ondas de um maravilhoso mar azul de onde Eunice avista o ameaçador helicóptero do Exército sobrevoando a orla; na blitz dentro do túnel onde adolescentes são tratados com brutalidade. Mais tarde, no episódio da prisão de mãe e filha, irá se sentir muito perto de ambas, nos porões medonhos do DOI/CODI, onde por doze dias a primeira permaneceu presa. Uma elipse e ‘25 anos depois’, a protagonista reaparece já como a mulher que teve de se recriar para um mundo novo que não havia escolhido mas lhe fora destinado para viver com os filhos. No final, família reunida, alguma luminosidade é reintroduzida, apesar do Alzheimer que definha uma desmemoriada Eunice.
Durante toda a trama, o jogo estético opera em rotinas e rupturas, memória e esquecimento, histórias e objetos- alguns aparentemente triviais como o longo colar de Eunice, quase onipresente, índice de estilo mas também de fidelidade a um jeito discreto de ser, a maior forma de expressão da protagonista, vivida por Fernanda Torres em trabalho que só recebeu aplausos até agora- no Brasil e no Exterior. Seu desempenho despertou comentários elogiosos de cinéfilos e críticos de arte como Luiz Santiago, que assim se expressou em comentário recente publicado nas redes sociais: ‘Atuação com face de mármore, entalhada com muita dor, repleta de expressões certeiras, às vezes dolorosamente sutis, muito bem escolhidas para cada momento.’ Fernanda Torres, alguém já disse, é a joia do filme. Mas há que se destacar também o trabalho impressionante de Selton Mello na caracterização de Rubens Paiva; e de Fernanda Montenegro, em atuação que lhe exigiu uma vida de experiência dramática para traduzir no triz de um olhar e no esgar de um brevíssimo sorriso a condição de Eunice nas cenas finais.
‘Ainda estou aqui’ é a história de uma mulher de repente retirada da tranquila vida doméstica para um lugar de luta. É a história de uma família atingida por crimes hediondos como sequestro, tortura, homicídio, ocultação de cadáver. É a história de um ditador e seus comandados que destruíam quem pensava diferente ou faziam desaparecer do mapa os que ousavam revelar ideais contrários aos ditames do regime. E é afinal a história de um passado que se resgata como lembrete. Seja para os que têm condição de recordar os fatos dos anos de ditadura, seja para os que não viveram o horror do período e por isso podem se deixar levar por narrativas enganosas.
‘Ainda estou aqui’ chega em boa hora às telas para nos lembrar, afinal, que há um tipo de sociedade onde, ao contrário de outras mais solidamente construídas, os direitos conquistados ainda correm perigo. Em nosso país, “Nunca mais” tornou-se slogan questionável especialmente na contemporaneidade. Então, há que se zelar, cuidar, atentar continuamente para que direitos como liberdade e democracia não sejam subvertidos. Como obra de arte, o filme de Walter Moreira Salles cumpre perfeita e exemplarmente esse papel.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras